O vício da liberdade


Conheço muito bem a cara da morte. Tem voz fraca, arrastada, apenas um fio de palavras demasiado húmidas para se conseguirem descolar umas das outras. Traz uma pele branca e baça, cobrindo os músculos lassos de uma arquitectura que já cedeu. Os olhos sem brilho, a cabeça inclinada, o já não interessa. Conheço esses sinais porque os vi no meu pai, e logo a seguir ele morreu. Quando vi Saramago pela última vez na televisão, a propósito de Caim, revi a morte. Ela estava ali. E pensei, estás nas últimas, José.
Não costumo sentir grande emoção quando alguém morre, sou sincera. Morreu, morreu. Morremos todos. É assim que é. Mas hoje não consegui permanecer serena no momento em que escutei a funcionária da biblioteca dizer a outro, então, professor, o nosso Saramago lá se foi. Tocou-me. E quero perceber porquê.
Como escritor, admiro em Saramago o imaginário fertilíssimo, a ironia decepcionada, a leviandade com que expunha o seu pensamento sem peias, e o seu humanismo socialmente incorrecto, e profundamente religioso. Toda essa dúvida cristã que o envolvia, essa procura de respostas que não vinham nos livros da igreja. Enquanto cidadão, invejei-lhe o indefectível vício de liberdade. Fez o que queria. Ignorou os ignorantes. Esteve-se nas tintas para o que esperavam dele por ser português, por ser Nobel ou outra coisa qualquer. Por último, admirei-o por reconhecer, com orgulho, que viera dos fundos do quintal. Essa origem era uma bandeira. A dos que levantam a cabeça, porque é uma cabeça e uma cabeça não se verga. Um orgulho que era também uma raiva. Numa terra onde todos lutam por ser reis ou, no mínimo, senhores, Saramago quis ser um homem, primeiro, e só depois, escritor. Nunca lhe perguntei, mas é o que faz sentido, no seu caso.
Por último, José Saramago morreu com a mesma idade da minha mãe viva. Mas a minha mãe, essa, eu já lho disse, está proibida de morrer.

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