A paz do tempo

Estátua de Mouzinho de Albuquerque e relevos da prisão de Gungunhana (Lourenço Marques, anos 50)

Hoje obrigaram-me a deitar roupas fora. Não digo que fossem belíssimas, mas tinham enorme valor estimativo. O pijama que o João Luís me despiu tantas vezes para fazermos amor entorpecidos pelo sono; uma batinha de trazer por casa, com flores e rendas, que poderá ser dos anos 50, mas que a minha mãe costurou em Moçambique, com o seu carinho de mãe, para a filha distante; a blusa com padrão egípcio que estreei quando lancei o meu primeiro livro - estavam a Ondina e o Dinis Machado, que foram tão bons comigo. Como podemos libertar-nos dos objectos que nos trazem balões cheios de espaço-tempo passado?
Ontem, encontrei os documentos sanitários necessariamente emitidos no Maputo para trazer o meu cão Farrusco, que tenho ao colo na capa do Caderno. Estão manchados de mercúrio para as feridas, porque o Farrusco, a certa altura, foi violentamente mordido por um cão de guarda, e ao tratá-lo devo ter sujado sem querer esses papéis. Como posso deitar fora a papelada com trinta e tal anos relativa à conformidade sanitária do Farrusco, que morreu em 1976? Como conseguem fazer isso os outros?
Ainda ontem, li que o Saramago retirou dos seus livros as dedicatórias à primeira mulher. Mas consegue permanecer-se inteiro, gente após roubar o que se ofereceu? Uma dedicatória? Juro que não sabia.
Também li que em Gori depuseram uma estátua a Estaline. Ocorreu-me: onde estão as estátuas depostas? Todas as estátuas depostas? Onde estão as pedras que formaram o Muro de Berlim? Todas essas pedras. Onde está a estátua de Mouzinho de Albuquerque a cavalo e os relevos da prisão de Gungunhana que se encontravam junto à catedral de Lourenço Marques? Onde se encontra toda a estatuária da ditadura, do Estado Novo? Deveríamos ter um museu de depostos. Um lugar onde aquilo que um dia teve honra, não interessa qual nem a que preço, pudesse repousar em paz. A paz do tempo. Da história. Do que não pode ser desfeito.

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