A vida manda

Há dois textos do Mundo Perfeito e do Novo Mundo, na adenda ao Caderno de Memórias Coloniais, que têm suscitado muitos comentários, os quais me têm sido feitos directamente. Ocorreu-me referi-lo hoje, enquanto atravessava a ponte e contemplava o Cristo Rei. Refiro-me a "Dinamitar o Cristo Rei" e "Fígado de Porco".

Esclareço: não tenho qualquer sonho em ver destruída a estátua do Cristo-Rei, nem pretendo dar ideias. A estátua propriamente dita não é um primor artístico, mas também não envergonha quem a concebeu. Ao contrário de alguns amigos apóstatas e anti-clericais, não penso que simbolize meio mundo de atrasos civilizacionais. O que me incomoda é a questão estética do embasamento, concebido para que Cristo se contemplasse ao longe. Não temos ali um morro suficientemente alto, do género Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, ou seja, um suporte natural, porque isso modificaria tudo. O pedestal, em betão armado, é um horror arquitectónico. Poderia pensar-se se não haveria forma de se fazer ali um "Querido, mudei a estátua", mas era preciso que alguém abrisse os cordões à bolsa, e não o Estado, logicamente.


Quanto a "Fígado de Porco" custa-me sempre quando me dizem "arrepiei-me a ler aquilo", ou pior: detestei, não fui capaz, entre outros.
Dei a ler os textos da adenda, em pré-publicação, a alguns amigos, e chegou a ser excluído da selecção. Era demasiado cru. Mas esse era o motivo por que o preferia. Por outro lado, se aquela selecção de textos pretendia representar o que escrevo na blogosfera, e quem sou enquanto autora, deveria constar. E foi assim. Continuo a gostar muito do texto, e é raro gostar dos meus textos algum tempo após tê-los escrito.

O aborto involuntário não é um tema muito caro à literatura, sendo tão legítimo como qualquer outro. A ninguém agrada pensar nas maternidades como lugar onde se perdem filhos, contudo, em todos os hospitais, a par das mulheres que ali chegam com enormes barrigas quase a parir, ou só para se acalmarem, há todos os dias aquelas que ali foram ter lavadas em sangue dos embriões ou fetos perdidos. São várias e raramente falam entre si. Falar implica reconhecer, e até ao último momento ainda temos esperança que alguém nos diga ser possível reverter a situação.
Um procedimento que considerei humilhante, sobretudo pela atitude de quem o fazia, foi o exame para verificação da situação abortiva, ou melhor da possibilidade de ter sido eu a provocar aquilo. Sobretudo da primeira vez, no Hospital de Santa Maria, quando ainda não havia lei para interrupção de gravidez. Sentia-se essa desconfiança. Não me fizeram grandes perguntas, não falaram comigo antes da confirmação do carácter involuntário.
Lembro, ainda, a solidão de uma mulher sem parceiro, nestas condições. Devido à incompreensível política dos hospitais, apenas o companheiro nos pode acompanhar na enfermaria. No meu caso, como não havia pai, ou, pelo menos, pai no sentido tradicional, teria de estar só. Nem amigas nem primas nem mãe. Todas as restantes mulheres estavam acompanhadas e eram mais jovens. A minha solidão causava espanto não verbalizado nos casais.
A situação de aborto involuntário tem algumas semelhanças com o momento do parto apenas na medida em que nos são provocadas contracções com o objectivo de expulsar o embrião/feto, momento a que se seguem horas de espera, e que normalmente termina com a curetagem - raramente se expulsa tudo de forma natural. São momentos de desespero, porque nessa fase já não há qualquer esperança de que aquilo possa terminar bem. Não nos vão colocar nenhum bebé nos braços, no final. Também sentia vergonha dos maridos que ali se encontravam, porque com as dores precisava de me movimentar, a bata do hospital subia, abria-se, e não conseguia tapar-me por motivos vários, sobretudo as próprias dores. Pensava muito no que estava ali a fazer. Por que insistia? Valia a pena? Assaltavam-me os piores pensamentos. Pensar era tudo o que podia fazer.

Ter acreditado aos 42 anos que ainda poderia ser mãe trouxe-me uma enorme esperança. Nessa altura acreditei que talvez fosse possível ser uma mulher como as restantes. Ter uma vida como as restantes. Quando se tornou evidente que me estava a torturar, sujeitando o meu corpo a um sacrifício que rejeitava, e desisti, compreendi que esse mundo me estava vedado. Sobretudo, não tinha nem tenho dinheiro que me permita ultrapassar esse obstáculo. Eis outra situação em que o dinheiro nos pode tornar mais iguais. Portanto, sou uma mulher como algumas, mas nunca como as restantes.
Não podemos ter tudo o que sonhámos. A vida ofereceu-me benefícios que nunca pedi e retirou-me outros que sempre esperei, que julguei merecer. Não me queixo, mas tenho tido necessidade de aprender a viver com a ideia de que falhei esses sonhos Ainda estou nesse processo.

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