A liberdade que nos permitimos

Há pouco estava a lavar cobertores no tanque, envolvida nos meus pensamentos, como sempre. Pensei na liberdade. Nessa dose mínima que nos é facultada como uma mercê da qual pagamos tributo. Pensei na minha liberdade e ocorreu-me a expressão "a liberdade que me é permitida". Fiquei a pensar nisso: a liberdade que nos é permitida, essa liberdade condicionada à qual nos habituamos. Podemos fazer isto e aquilo se. Podemos ir ali e acolá se.
No momento seguinte, recordava o meu diretor do colégio, o Sr. Ilídio Correia, que me adorava. Devia ser uma adolescente adorável, penso agora. Como quereria ter sido minha própria filha, irmã, mãe! E talvez, sem o perceber, tudo isso me tenha acontecido num só tempo.

Cheira-me a sabão azul e branco, a roupa lavada.

Estamos sentados na salinha de visitas onde expôem as fotos das melhores alunas, se recebem os familiares e se é chamado para falar com os diretores. Sou chamada muitas vezes, nunca para levar ralhetes, mas para que o sr. Ilídio converse comigo. Gosta de conversar comigo, o que as prefeitas estranham e não me confere grandes simpatias. Conta-me histórias do passado. Foi missionário leigo em Angola. Andou a civilizar os pretos. Fala deles com superioridade, mas admiração. Bebeu a cultura nativa e vê nela nobreza. Depois pede-me opinião. Interessa-lhe saber o que penso sobre a independência das colónias, sobre os pretos, o colégio, a disciplina; sobre a vida. Eu nada sei. Conjeturo. É a opinião de uma menina que acredita que tudo é possível, que carrega uma esperança do tamanho da cidade. E ele ri-se. Ri-se muito quando lhe falo da liberdade que ali não tenho, nem as outras internas. Devíamos poder sair sozinhas, como os rapazes. Deviam deixar-nos ir passear ao domingo à tarde, pelo menos. Estamos completamente presas. Em que somos diferentes dos rapazes que podem sair todos os dias? Por que não sou digna de confiança? Não sou eu, são algumas, responde-me. Argumento. Sei que argumento. Falo de liberdade, digo muitas vezes essa palavra, "liberdade". Ser livre, livre, livre. Lá fora. Sim, lá fora somos livres. E eu quero isso: ser livre. No futuro serei livre. E ele ri-se.
A liberdade não existe, Isabela. Um dia verás que tenho razão. A liberdade não existe. E contradigo-o. Contradigo o homem de 90 anos que foi missionário leigo em Angola, em 1930, que atravessou quase um século de vida. O que me impede de invocar esse ideal que julgo ser possível sem limitações? Ainda estou tão longe de perceber que ele tem razão. Ainda estou tão longe de saber que, tendo ele razão, é possível conquistar parcelas de liberdade, e gozá-las com delícia. Ainda nem sequer imagino que somos nós quem estabelece as fronteiras da liberdade que nos permitimos gozar. Nós, a nossa consciência. Esse género de polícia de costumes em nós.

Creio que não valorizei suficientemente o senhor Ilídio enquanto nos conhecemos. Vi-o sempre como o velhote antiquado que, embora gostasse de mim, me prendia. Não lhe prestei a devida atenção, não o acarinhei suficientemente. Era um homem exigente, autoritário, possessivo, emocional, espontâneo, dadivoso. Oferecia-se aos outros com generosidade. Acho que os homens que marcaram a minha vida têm em comum esta personalidade intensa, vibrante, ocupando espaço à larga dentro de mim. Devo-lhe o reconhecimento da grande amizade que me dedicou, do carinho paternal com que me recebeu nos anos em que estive à sua guarda. As pessoas morrem e depois já não podemos dizer-lhes de viva voz que tinham razão, que aprendemos finalmente as suas lições. Que ainda as lembramos com amor.

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