Paris - diário de viagem 8


Os outros estão sentados na esplada de um café à beira do canal Saint Martin, junto à Écluse de Récollets. Eu também, mas a diferença é que não sou como eles. Estou sentada mas não pertenço. Estou ali, mas aquele não é o meu lugar. Pareço adulta, mas sei que ainda sou uma criança. Não deviam deixar crianças pedir cervejas nos cafés, e bebê-las.
Os outros sorriem, conversam. Os outros devem ser importantes, ter uma casa, companheiros, profissão, vida. Não serão, como eu, solitários, associais, inadequados, preconceituosos, agressivos. Não enrolam, como eu, de certeza, os pés no tapetes das etiquetas. Não parecem. Há um homem que escreve num caderno. Parece-se bastante comigo. Será jornalista? Escritor, não. Os escritores ganharam vergonha de escrever em público. Aposto que é jornalista. Alinhava uma crónica para o jornal do fim-de-semana. Meia hora depois chega uma senhora jovem, com muito bom ar, e de repente o homem já não se parece comigo. Fecha o caderno. Sorri. Alegra-se.
Gilbert diz-me, "já não vais para nova, tens de te dar com os outros". Não é fácil. Eu dou. Quer dizer, dou-me o quanto posso. Há certos limites. O que quer ele dizer com já não ir para nova? Não estou à espera que ninguém me ampare quando for velha. Eu amparo-me. Sempre me amparei.

As pessoas detestam os outros, desconfiam dos outros, precisam dos outros. Os outros fazem-nos tanta falta. Alegram-nos como a jovem ao jornalista do caderno.
Gilbert devora um livro de Baudrillard. La société de consommation. Não quer falar comigo. Põe-me o meu Coetzee à frente e diz, "Vá, lê!" Não leio.

Um homem novo, de sandálias e t-shirt cava, descontraído, senta-se na esplanada com uma jovem asiática, cheia de estilo, de vestido dourado. Não são um casal. Gilbert exclama, "oh, não!" Chamo a sua atenção para o cãozinho que os acompanha. Diz, como uma criança, "o cão". O pequeno cãozinho, muito cordial, bem tosquiado e penteado, feliz por estar com o dono na rua reconcilia Gilbert com os vizinhos da mesa ao lado. Distrai-se por um minuto. Fazemos-lhe festinhas. O dono sorri.
Gilbert e Antinoo vivem em Paris há cerca de seis anos, lugar onde se sentem em casa. Não sei o que será sentirmo-nos em casa numa terra onde não se fala a nossa língua. Sinto-me sempre estrangeira, transitória. Mesmo em Portugal, sendo tão portuguesa, me sinto tantas vezes vinda de um outro lugar. Antinoo oferece-me um kir ao jantar: champanhe com xarope de framboesa, segundo percebo. Nunca tinha bebido, embora seja muito conhecido por cá. Kir não é um nome francês, digo. Não, deve ser alemão. Deve vir de kirsh. Não sabemos.

Finalmente, vi a rola que tenho escutado nas traseiras. Encontrava-se a apanhar sol na varande do prédio em frente. É um lindo pássaro doméstico, gordo, acastanhado, que vive em liberdade, voando pela rua, sem se afastar muito. Acho que vou deixar água e arroz nas minhas varandas, para que os pombos do meu bairro me visitem. Gilbert dirá, "esses transmissores de doenças vêm sujar-te a casa toda", e eu responderei, como sempre, "transmitem as doenças com que os humanos os contagiaram". Nós é que trazemos a podridão ao mundo.
Numa loja de souvenirs, um casal de chineses desistiu de comprar lenços de senhora quando leram, na etiqueta relativa à origem, a inscrição Made in China. Aposto que encontro lenços iguais na loja chinesa do meu bairro.

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