Brancos, cúmplices e hipócritas, tudo de primeira

O que digo sobre a vida dos brancos em Lourenço Marques cai muito mal a meia dúzia de senhores que de lá vieram e me acusam, e ao meu pai, do pior que a linguística vernácula e a divisão de classes inventaram.
Compreendo que lhes caia mal, e até me parece legítimo que desenvolvam os esforços possíveis para me descredibilizar com argumentos relacionados com a minha tenra idade, a pertença a uma classe trabalhadora sem educação, o fato de ter vivido na Matola, de ser gorda e não saber pontuar. Vale tudo. Parece-me muito bem, no âmbito da mesmíssima liberdade de expressão que me assiste de cada vez que escrevo uma frase. A História - não eu nem eles - fará o seu trabalho.
Agora, em relação ao meu paizinho, o qual, segundo parcas vozes, não passava de um indivíduo mal formado e de baixos instintos, cabe-me esclarecer que foi o responsável pela minha educação, e que o que sou depende bastante desses valores que bebi em casa. Por outras palavras: eu sou o melhor argumento de defesa do meu pai; respondo pelos seus princípios, na medida em que, tendo os meus defeitos, seria incapaz de me referir às pessoas que me têm insultado com a linguagem reles e raivosa que me têm dirigido. Não espumo da boca. Não lhes tenho raiva. Não são os meus fantasmas. Conheço bem a sua visão do mundo e o autismo com que a defendem. Acreditam tanto na sua versão da vida ultramarina que podiam levá-los ao polígrafo: passariam.
Não sou inconsciente. Sabia, antes de publicar o Caderno, que estas vozes acossadas reagiriam. Como disse, conheço o discurso destas pessoas, a sua forma de pensar: eu vivi no meio delas, nos locais onde garantem que eu não posso ter vivido, como se de fato me conhecessem.
A história que conto no Caderno, lamento imenso, precisava de ser contada. Por mim ou por outros. Tinha de sair.
Trata-se da minha visão daquele mundo, naquela idade; reproduzi ali as vozes que fui ouvindo e dei vida às personagens que foram passando por mim. Há momentos que não consigo datar com precisão, e houve a necessidade de proceder a algumas adaptações ao nível das personagens. Dou um exemplo: o primo a que me refiro como tendo estado na guerra colonial, tinha um laço de natureza diferente com a minha família e não morreu objetivamente. Pertencia, digamos, a uma família de brancos de primeira. Tanto quanto sei, milita num partido da extrema-direita, acompanhado por outros retornados que também sempre adoraram os pretinhos, e para mim está tão morto que fede.
Não se pode esperar que uma autobiografia literária seja um documento literal. Pode é esperar-se que os fatos relatados correspondam a algo realmente vivido e sentido. E, por esse lado, sintam-se à vontade para provar que a vida dos brancos, no campo de concentração de luxo que era Lourenço Marques, não correspondia ao que escrevo.
É que enquanto o meu pai andava atrás dos seus negros, e lhes dava encontrões expressivos, e os mandava para partes pouco elegantes, para que as instalações das casas onde os brancos de primeira viviam ficassem mesmo catitas, os últimos poliam cumplicemente os calções nas cadeiras da Princesa, da Fábrica, do Scala e do Infante, e mais no Clube Naval e comiam gelados na Coop e compravam cadernos na Minerva, e entregavam uma quinhenta ao preto da Baixa que lhes engraxava os sapatos, mas sem lhe tocar na mão, porque eram sujos. Dava-lhes imenso jeito que alguém fizesse o trabalho do eletricista da Matola e do machambeiro do Infulene, para não terem de misturar-se com a catinga dos pretos, tão bons para o trabalho braçal, mas bons à distância.
Convinha a todos que o meu pai se levantasse cedo para ir ao Xipamanine arrancá-los à palhota, porque alguém tinha que o fazer, e não seria o branco de primeira, com as mãos limpinhas e administrativas com que recebia, no Banco Nacional Ultramarino, o lucro que o meu pai fazia a explorar pretos em seu nome, para usufruto de um sistema de que todos hipocritamente dependiam e sustentavam.
É em tudo isto que me baseio para defender que o eletricista da Matola e o machambeiro do Infulene, que cheiravam a catinga do preto e nem davam por ela, ao lados destes senhores, foram uns santos.

Mensagens populares