Ninguém respira

Edward Hopper, Sun in an Empty Room


A casa está vazia, com as luzes apagadas. Sem luz. Há fios elétricos descarnados pendurados do teto. Os últimos donos saíram. A mulher beijou a parede do quarto onde dormia. Disseram, adeus, gostámos de ti, olharam uma última vez pela janela e partiram. Terem gostado dela, isso é que é importante. Também gostou deles. Eram boa gente. A mulher pensava muito, e podia acompanhá-la nas suas dúvidas, medos, planos e desejos. As pessoas têm uma beleza tão grande na sua arquitetura. Não como as casas. Uma casa não muda. É o que é. As pessoas alteram-se com a direção do vento. São assim, são assado. São tudo. São tudo ao mesmo tempo.

É noite alta e a casa está vazia dentro de si. Ninguém respira lá dentro. Ninguém pensa, fala. O coração não bombeia o sangue que circula nas veias de alguém, pum-pum, pum-pum, pum-pum. A casa escuta tão bem, com as suas grandes orelhas de abano, mas agora nenhuma mão toca as suas paredes, ninguém se estende no chão absorvendo a frescura do soalho.
Que silêncio tão frio! Que abandono! A casa entretém-se na noite escutando repetidamente os pensamentos e as conversas gravados na atmosfera do quarto, da sala, da cozinha, na primeira camada de tinta, mas por baixo dela, chegando ao tijolo, impossível de expurgar. Gostas de mim? Gosto de te foder. Sim, mas ainda gostas de mim? Tenho de me ir embora. Não vás. Desta vez vou engravidar, tenho de engravidar. Não posso enervar-me. Se me enervar é pior. No trabalho detestam-me. Largo aquilo. Sim, largo tudo e vou-me embora. Que se lixe, hei-de arranjar trabalho em qualquer lugar. As pessoas são más sem pensar porquê. São más porque sim. O que vou fazer para jantar? Pão, não. Não vou comer pão nem nada estúpido. Tenho de me inscrever no ginásio. Estou cansada das pessoas. Finalmente em casa. Agora posso ser eu outra vez. Se fizer compras com o cartão Jumbo a partir de 21 de Janeiro, a despesa só será cobrada a 5 de Março. Dá-me tempo para pagar o seguro do carro. O mecânico pensa que me engana. O que faço agora? Desisto? Não desisto. Não se desiste. Pensa. Queres um chá? Chá de quê? Sei lá, tens tília? Devo ter. Só se mo trouxeres aqui. Não consigo dormir. É sempre a mesma festa chegando esta hora. Valerá a pena tomar um comprimido? Que horas são? Vou deitar-me no sofá com a televisão ligada.
A casa escuta. Respira fundo, fecha os olhos e deixa-se levar na melodia dessas vozes gravadas no lugar para sempre, com as quais poderá ainda contar quando chegar o fim do mundo.
E há cabelos nos cantos onde a vassoura não chegou. Cabelos muito finos, claros. Pó que é pele e unhas e fluídos repousando sobre as portas. Nos interruptores e tomadas restam impressões digitais. Por debaixo do balcão da cozinha ficaram grãos de feijão, uvas, parafusos, cotão. Secaram, enferrujaram. A casa respira fundo esse adn doce e ácido, denso. Afinal, cheira. Sim, sim, há um odor a limão e café na cozinha. O cheiro da terra dos vasos ainda por lá está. E o suor. O do calor e o do frio. Um suor pesado, carregado de tristeza, alegria, abandono, desilusão, esperança. O cheiro a sabonete nota-se ainda muito claro. É de leite. Gostava tanto de os abrigar sentados na cozinha, à primeira luz da manhã, em silêncio, bebendo leite. Deve ser tão fresco.
Não está completamente só, pensa. Os últimos donos ainda lá moram um pouco. Não é um abandono, mas um intervalo. Virá gente nova e a casa habituar-se-á a uma nova maneira de falar, a diferentes pensamentos e conversas. Uma casa precisa de saber adaptar-se ou não sobrevive. As noites é que são piores. As noites são muito sós. De dia existe luz entrando cheia pelos vidros das grandes janelas e os pombos piam lá fora. A casa olha para a rua e examina quem chega e parte.
Mas agora, nesta noite tão escura, tão funda, a casa permanece vazia e só. Tão só. Nada mexe. A escuridão engoliu as horas muito lentas. Ninguém respira, ninguém sonha no claustro da sua barriga.

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