Por que saí do jornalismo

Hoje, ao acordar, ouvi uma ave levantar voo na minha varanda. Deveria estar pousada no beiral. Talvez fosse um pombo.
Ainda na cama, lembrei-me de uma malfeitoria que me fizeram quando trabalhava na Notícias Magazine, no último andar do Diário de Notícias, em 1994 - tenho uma memória de elefante!
Na Primavera, um casal de pombos fez ninho numa reentrância da estrutura exterior do edifício. O ninho era visível do lado de dentro, e não me lembro se o conseguíamos alcançar, mas sei que na redação nos apaixonámos pelas avezinhas, e lhes trazíamos arroz, milho, pão... Nasceram dois borrachinhos lindos, que íamos vendo crescer, ganhar penas, engordar, tentando equilibrar-se para dali a pouco voarem. Era como ter uma câmara da National Geographic ligada em direto ao nosso andar, mostrando-nos a vida dos pombos de cidade 24 horas por dia.
Uma manhã, quando cheguei, a secretária de redação olhou-me com cara de caso, barrou-me a entrada, e explicou-me que os pombos já lá não estavam. Não estavam, como? Tinham voado? Não. Alguém, na nossa ausência, os tinha tirado de lá, não sabemos como, e havia feito uma limpeza tal à zona do ninho que nem uma palha restara. Fiquei inconsolável. Fiquei pior que isso. Fiquei chocada. Onde estavam os meus pombos e os meus borrachinhos? Mataram-nos? Se calhar não, dizia-me a secretária de redação. Poderiam tê-los levado para um pombal. Algumas pessoas querem proteger-me da maldade humana, percebo, mas não é possível.
Eu sei que a ninguém no mundo interessa a morte dos pombos, mas não me importo de parecer ridícula porque este assunto, ou outro qualquer, me comove.
De maneira que, em 1994, resolvi escrever uma carta, nunca respondida, ao administrador do DN da altura, pedindo justificações sobre o desaparecimento dos pombos. Na redação todos me disseram que não valia de nada, e eu sabia. O administrador gozaria o dia todo com o assunto, bem como a secretária, e o piso inteiro onde se tomavam as decisões importantes sobre quem vivia ou morria naquele grupo. Mas fi-lo porque não conseguia calar-me perante esse ato gratuito que não importava a ninguém. Importava para mim.
É mesmo muito provável que os leitores também se riam desta história, e me deem certo desconto só porque se habituaram às minhas idiossincrasias, mas confesso que passados 16 anos ainda não tenho vontade de rir. E a prova está em que lembrei o assunto hoje de manhã, ao ouvir o bater de asas de uma ave que não vi.
Costumo dizer que saí do jornalismo porque não me sentia livre. Hoje ocorreu-me que talvez tenha sido porque me mataram os pombos e respetivos borrachinhos, que, num recanto arquitetónico do edifício do DN, traziam à minha vida a alegria de querer chegar cedo ao trabalho.

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