Questões do nosso tempo 2 - igualdade de oportunidades a passo de caracol

Não é melhor admitir de uma vez por todas que homens e mulheres não têm acesso aos mesmos direitos e que, por isso, deveríamos compensar socialmente as vítimas desse abuso? (mim)

Existe a possibilidade de os homens também trabalharem como empregados domésticos ou essa tarefa estará eternamente guardada para as mulheres? (Sei da Selva)

Identidade e memória coletiva, (Berta)


A cultura em que vivemos não muda porque nos apetece. Porque é lógico que mude. Há movimentações lentas, ligeiras alterações das práticas diárias que acabam por gerar tendências de mudança impossíveis de conter. Contudo, a mudança não se institui de forma generalizada, mesmo legislada. A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, levará ainda muito tempo a tornar-se natural para todos. A alteração legal que permite interromper a gravidez até às 10 semanas de gestação não impede que o aborto ilegal continue a realizar-se às 11, 12 e 13. Portanto, mudou, mas mudou mas só bocadinho, porque a formação cívica e moral não chega a todos os indíviduos por igual. Mudamos sempre aos bochechos, conseguindo pequenas vitórias que se vão acumulando. Mudamos, também, avançando após recuos. O segredo é sempre a persistência.


As culturas resistem à mudança de dentes cerrados e sem respirar, até ao momento em que decidem permitir-se uma golfada de ar ou escolhem morrer por sufocação. Pode ainda dar-se o caso de estarem desatentas nas suas convicções. Quando as mulheres da classe alta e média tiveram acesso à educação fora de casa, transcendendo as lições de Francês, piano e lavores, e as da classe baixa foram trabalhar nas fábricas, o mundo já tinha mudado. Só os muito cegos não perceberam que o empoderamento das mulheres estava em marcha.
Dir-me-ão que tem sido uma marcha lenta e desigual (no que respeita a distribuição geográfica, classe social...), mas olhemos para o mundo de hoje e comparemo-lo com aquilo que se esperava das mulheres nos anos 60, em Portugal, por exemplo. Meu Deus, a volta que isto levou, que felizmente tive oportunidade de testemunhar, e na qual tenho participado!

A morosidade da alteração de costumes deve muito às questões de identidade e à memória coletiva. A memória coletiva é muito linda, mas pode tornar-se numa grande chatice, sobretudo quando nos vemos impedidos de alterar um costume em seu nome. Eu daria com gosto um belo entalanço na memória coletiva para acabar com touradas e outras práticas cruéis sobre animais, porque é essa a tradição, que nos chegou dos nossos trisavós. Daria um bom pontapé na memória coletiva para desfazer a ideia generalizada que que fomos colonizadores bonzinhos, diferentes dos outros, porque essa foi a ideia que a ditadura vendeu/propagandeou com sucesso.
Metia a memória coletiva nas ruas da amargura para apagar essa ideia ainda tão forte de que homens e mulheres devem manter-se à parte, com papéis diferentes...
Artificial e subjetiva, a memória coletiva regista informação que interessou sedimentar, excluindo o que se preferiu ignorar, mas não posso negar que é fundamental na definição da identidade cultural dos indivíduos, e a identidade é um assunto muito sério.

Numa reportagem recente sobre livros de retornados, no Ípsilon, a Professora Isabel Ferreira Gold, investigadora no âmbito da literatura e estudos pós-coloniais, nos EUA, dizia algo que achei interessante a propósito do meu livro, no qual não tinha pensado, pelo menos nesses termos, e me parece corretíssimo. Dizia ela que o Caderno é uma narrativa de decantação na qual "psicanaliso" a figura do meu pai, personagem fundamental na formação da minha identidade. Achei isto genial, porque, de fato, creio ter escrito a carta de alforria do meu pai; e fi-lo porque precisei dela para definir quem fui e sou perante tudo aquilo. Não foi um processo consciente, mas está lá. Digo sempre que quis apenas contar a nossa história de pai e filha, mas acontece que eu sou, que me situo na minha cultura, no que defendo e condeno a partir desse laço fundamental. Ou seja, ao emitir a carta de alforria do meu pai, defini-me, e isso permitiu expor-me sem culpa e sem vergonha. Definimo-nos contra ou a favor de uma formulação, ideologia, memória que recebemos, mas não sem ela.

Não podemos esperar que identidade coletiva que uma cultura sedimentou, e que situa civilizacional e ideologicamente os individuos que a ela pertencem, mude do dia para a noite. É preciso esperar que os filhos bebam outros valores e os passem aos seus filhos. Embora eu tenha sido educada numa família bastante antiquada ao nível dos valores, pairavam já por ali uns fiapos de liberdade individual. O meu pai não me queria subjugada a nada nem a ninguém, e isso constitui um grande avanço relativamente ao que o seu pai e avô desejaram para as suas filhas. Eu já sou fruto dessa ténue alteração na ordem do pensamento.

Embora vivamos uma época de crise económica, o que não favorece o desenvolvimento de igualdade de oportunidades, não creio que estejamos muito distantes do tempo em que os homens trabalharão como empregados domésticos sem que lhes chamem maricas. E afirmo-o porque, em Paris, o meu amigo Gilbert já paga a um empregado estrangeiro que lhe trata da limpeza da casa. Parece que a coisa se tornou natural por lá. Portanto, um dia destes ainda veremos Edilson e Carlinhos, acabados de chegar da Rondônia, limpando as escadas do nosso prédio com brio, e discutindo a performance do Sonasol em comparação com a do Ajax. Seria interessante, depois, desenvolver toda uma educação que levasse os nossos filhos a encarar os empregados domésticos, homens ou mulheres, como quaisquer outros trabalhadores, e não como serviçais de classe baixa.

Os homens e as mulheres têm, para todos os efeitos, acesso legal aos mesmos direitos. Daqui não arredo pé. Sabemos que na prática não é assim, porque os empregadores não tiram cursos de ética, porque há pessoas e pessoazinhas, e milhentas formas encobertas para promover a desigualdade no acesso ao emprego - sendo que é preciso nunca baixar as guardas e denunciar as situações; mas isso não pode constituir argumento para reclamarmos uma diferenciação. Se um parceiro ou parceira não nos ajuda a cuidar dos filhos, nem da casa, não havendo divisão de tarefas, e assistimos ao progressivo afundamento da nossa carreira, essa questão tem de ser discutida e resolvida no âmbito familiar ou no tribunal. E a haver compensação, deverá ser atribuída juridicamente, pelas vias legais. Não vejo nenhuma outra forma de compensar socialmente as pessoas que são vítimas dessa situação. No entanto, estou aberta às sugestões dos leitores.

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