Carta que não escrevi ao meu amor

Às vezes penso que deveria escrever uma cartinha ao meu amor, toda manuscrita com a minha melhor caligrafia e em papel da ex-papelaria Fernandes.
Expunha-lhe os meus mais sinceros pensamentos, sabes, amor, continuo a gostar tanto de ti, embora isto, eventualmente, não passe de uma antiga pancada, e saiba que detestas tudo o que vem de mim, ideia, nome, figura. Estou ciente de que vais já telefonar-me rogando que te largue a porta, mal recebas esta missiva, que não me suportas, que vício funesto o meu. Amas a tua bengala, que aliás se encontra a teu lado no momento em que me falas, vigiando as tuas palavras com o seu triste ar de madeira trabalhada. Não esperavas desenvolver tanta afeição por ela, eu sei, amor, mas aconteceu. Contas-lhe tudo sobre mim, nós, os teus desvarios, de que agora nada te resta senão a cicatriz no calcanhar esquerdo. Aliás, o que existiu não interessa, porque há meio século que terminou, e mal, e não foi além de um engano juvenil, todo o Portugal sabe; que quantidade de desprezo me satisfará a ponto de desistir? Arre, que mulher teimosa!
Deste lado das ondas eletromagnéticas, quando me telefonares, responder-te-ei que compreendo que adores a tua bengala, porque, embora gasta, segura-te tão bem. Os dois formam um. Não fosse a tua bengala, como conseguirias apoiar-te para te levantares do cadeirão exótico tão semelhante àquele onde fodemos, às terças à tarde, as melhores fodas da nossa vida? Tudo tem a sua utilidade. E se foram umas fodas valentes! Se calhar não era amor, amor. Se calhar era só carne e vício. Mas se assim foi, caramba, deixa-me ao menos esclarecer o que merece lembrança: era carne de primeira, e deixou-me na língua e no céu da boca um gosto baço, negro, adocicado, profusamente canibal, que de tempos a tempos evoco, como se fosse o primeiro pêssego que comi.
Às vezes penso que deveria escrever-lhe cartas apaixonadas que o levassem a sentir por mim uma profunda pena. A criatura desgraçou-se, diria, e mais a sua abençoada bengalinha, anuindo, com o habitual aspeto de madeira consternada. Mas não escrevo. Não escrevo a puta de um corno de carta enquanto não esmagares as fuças contra a realidade, as fuças contra o vazio, amor, contra o que não pode, não pode, juro-te, mesmo que quisesse, não pode apagar-se.

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