Deves-me milhares de euros em psicanálise

Senta-te aí.
Estou a ver que és boa a dar ordens.
Consta que sim. Hoje, escreveram-me reclamando que sou parecida contigo.
Sempre foste. Mas mais do que comigo, és a cara, o corpo e o feitio da tua bisavó V.
Passavas a vida a dizer isso. Não conheço ninguém da tua família por alguma razão em especial?
Também os conheci mal. Não éramos unidos. Havia conflitos entre irmãos. A tua avó vivia no tugúrio que conheceste.
Farto-me de sonhar com ela.
Com a minha mãe?
Estou sempre a visitá-la numa casa paupérrima, escura, onde vive só, cega, com os animais como companhia, embora eu não os veja ou sinta lá. Não é a casa onde nasceste. Não conheço o lugar onde vou em sonhos, mas parece-me um bairro pobre de Londres, em 1820... ruas estreitas... escuras.... miséria. Como se vê nos filmes de época. Às vezes tenho de esperar por ela na casa negra e mal cheirosa. Uma casa sem alma, sem vida. Não é apenas a pobreza, entendes?! Há um vazio naquele espaço. Não há sentimentos. Nem dor nem alegria. É o nada. A total solidão. E sinto uma culpa enorme.
A minha mãe, em nova, antes de ficar doente, era uma mulher asseada.
Não digo o contrário, pai. Aquilo é um sonho. Sabes bem que não controlamos o que sonhamos.
Talvez entres na sua mente. No que a sua mente era antes de morrer.
Achas?! No que a sua mente era antes de morrer?! O vazio. Talvez. Mas sinto culpa, entendes?!
Esquece isso.
Costumas encontrar a avó?
Não, estás maluca. A tua avó não frequenta o meu andar.
Mas sabes dela?
Não, não sei nada dela. Isto aqui não é assim. Diz lá, hoje mandaste-me sentar. O que me queres contar?
Sorrio.
Nada de especial. Tenho saudades tuas. Disseram-me que somos parecidos. Fiquei orgulhosa.
Tens orgulho em mim?
Ensinaste-me isso.
Não ensinei nada.
Sem querer, ensinaste.
Já sei que foi complicado para ti gostar e não gostar de mim. Nunca compreendi as tuas atitudes. Eras ríspida comigo, quando voltámos de Moçambique.
Era ríspida contigo e desejava que te evaporasses da face da terra. Não suportava ouvir-te. Foste o meu maior pesadelo. Houve alturas em que te odiei... meu Deus, meu Deus, eu odiei-te, mesmo. E tinha de disfarçar, em nome do amor filial, da distância que nos tinha separado, de tudo o que esperavas de mim, do teu amor por mim...
Mas conseguiste o que querias, Isabela. Eu desapareci inapelavelmente da face da terra.
Lá isso...
Rimo-nos ambos.
Acabaste por ter sorte, no final. Lutei para não te odiar. Não queria. O ódio pesa demais e tu eras tão grandioso, tão perfeito naquilo em que eras bom. Deves-me milhares de euros em psicanálise, estás a ouvir? E a falta que me fazem.
Rimo-nos de novo.
Se não os tivesses pago não poderíamos estar agora juntos. Tens aí alguma coisa que se beba?
Só se for moscatel de Setúbal.
Não tens uísque?
Acabei uma garrafa de Dimple há umas semanas.
Isabela, casa onde não há uísque....
... todos ralham e ninguém tem razão.
Mais risota.
Vai lá buscar essa zurrapa de moscatel, e escolhe aí na gerigonça um filme de cóbois, ou uma comédia, para vermos juntos antes de me ir embora. Nada de dramalhões. Se adormeceres, levo-te para a cama e tapo-te antes de sair.
Levanto-me e beijo-o.
Faço-lhe uma festa na cabeça, tal como uns dias antes da sua morte, quando já não se endireitava na cadeira, e mal falava. Não lhe digo que me ocorre esse pensamento. Seria demasiado triste. Para mim, seria demasiado triste.
Fui buscar moscatel para dois.

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