A sorte dos remediados

O meu vizinho do lado que me perdoe, mas isto merece ser contado.
Toda a gente sabe que as paredes dos prédios são de papel. Estando eu a trabalhar no escritório ouço os filhos do vizinho do lado, no seu quarto, antes de dormirem. Um terá os seus 7 anos, o outro cerca de 12, mais coisa, menos coisa. São uns meninos desenxovalhados. Brigam um com o outro. Fazem as pazes. Chamam o pai ou a mãe. Mandam-nos baixar o som da televisão. Pedem ajuda nos trabalhos. Amuam. Riem-se. Nunca os ouvi chorar. Há bocado o pai chegou ao quarto a fazer de monstro, convincentemente, e foi uma risota pegada. Até eu me ri deste lado da parede. Foi impossível de conter. Lembrei-me do meu pai que também fazia toda a espécie de macacadas para me pôr a rir, e eu ria, ria até quase perder a respiração. Fazia de vampiro, de Abominável Homem das Neves, de fantasma, de King Kong, de monstro enlouquecido sem qualquer denominação. Adorava aquilo, aquele pai, aqueles momentos. Que bom ter alguém adulto que brinca connosco, que se importa com a nossa alegria! Sentimos que somos o tesouro de alguém, e essa certeza há-de acompanhar-nos para sempre. Não é só uma certeza, mas um seguro de vida que nos prende ao mundo apesar dele. Estes garotos têm uma sorte que nem sabem. São miúdos suburbanos cujos pais trabalham para pôr o pão na mesa. Ninguém dá banquetes e os manda para a cama enquanto entretém os convidados. Ninguém os trata de alto nem lhes dá lições de etiqueta. Têm direito a ser crianças e a fazer parvoíces. Quando pensei nisto ocorreu-me que era preciso ter sorte para se nascer apenas remediado. Nem de mais nem de menos: a conta certa.

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