Hoje vi o meu pai

Com os anos tenho desenvolvido a capacidade de apreciar a vida que advém da consciência da nossa mortalidade. Os gestos simples, os acontecimentos bons, independentemente da sua dimensão.
Aproveitei a manhã de domingo sentando-me nos bancos junto à igreja, lendo Dostoievski ao sol. As cadelas giravam à minha volta e acabaram por deitar-se na relva, observando os passantes.
A hora da missa aproximou-se, o movimento engrossou, de maneira que terminei a leitura e encaminhei-me para casa.
Aproximando-me dos baloiços do jardim, mas à distância de uns cem metros, avistei o meu pai sentado, falando com dois garotos de bicicleta. O perfil, os óculos que escureciam ao sol, o corte de cabelo, a compleição, um pulover ligeiramente encurtado pela barriga, todo ele era o meu pai. Deixei-me estar a observá-lo ao longe, com prazer, com um sorriso nos lábios. Não podia desperdiçar a oferenda da minha falta de vista: ao longe era o meu pai quando tinha os seus 50 anos. Aproveitei essa visão enquanto durou. Sabia que não podia correr para o abraçar e beijar. Não podia aproximar-me e dizer-lhe que o amava, que tinha saudades suas. Podia vê-lo e seria muito ingrata se não usufruisse essa dádiva que os meus olhos me ofereciam.
A felicidade é doce, literalmente doce. É um bolinho capaz de saciar a necessidade momentânea de açúcar. Estaquei e deixei-me estar a saborear a doçura desse bolinho de coco fresquinho, até que a figura do meu pai se levantou do banco, e a linguagem corporal não era a do meu pai. A maneira como abanava a cabeça, mexia os braços e as mãos, como caminhava... Retomei a subida e voltei para casa sorrindo. Hoje vi o meu pai. Que sorte!

Mensagens populares