A língua portuguesa é de borracha
Os portugueses, e se calhar os povos de outros idiomas, usam a sua língua como certos provincianos: ao comprar um sofá de pele nunca lhe tiram o plástico protetor, para não se estragar. O resultado é que passam a sentar-se num sofá de plástico, e, quando finalmente removem a proteção, porque entretanto lhes cheirou a mofo, a pele que tanto protegeram, apodreceu.
Todos são donos da língua e a usam e modificam a cada dia das suas vidas. As línguas não se alteram quanto à grafia, léxico, semântica ou sintaxe por mero decreto. Quando chega o decreto já elas mudaram há muito, e somos nós os responsáveis. Sentámo-nos nela, gastámo-la, remendámo-la, arranjámos formas de tornar o assento da língua mais confortável. A lei de Lavoisier aplica-se a quase tudo, mas à língua, que nem ginjas. Nela, nada se perde, e mesmo o que se ganha, transforma-se. Ninguém se preocupa com a evolução sofrida pelos diversos falares do Latim em contato com as línguas dos territórios para onde foram levados pela expansão do Império Romano, mas se uma palavra do Português europeu perde uma consoante muda, o nosso país indigna-se como não se indignaria se tivéssemos um primeiro-ministro mentiroso ou um presidente lerdo das ideias. Que estamos a imitar os brasileiros. Que nós não falamos brasileiro. E, sobretudo, que a nossa língua é melhor que a deles. Não levo as mãos à cabeça porque não posso perder tempo com dramatizações, embora goste.
Os meus alunos, que ainda há um ano davam erros ortográficos que deixarão de o ser a partir do momento em que o acordo vigore nas escolas - no próximo ano letivo, embora nos exames nacionais já tenhamos sido avisados para aceitar as duas grafias - insurgem-se contra ele. Escrevo-lhes, no quadro, redacção, e peço que leiam. Leem redação. Segundo passo: escrevo redação, e leem redação. Qual a diferença, pergunto. Bem, a diferença, é que sem a consoante muda está errado. Porquê? Porque altera. Mas a alteração prejudica a mensagem? Na leitura, não, mas na escrita fica estranho. Explico: a aquisição das regras gráficas de uma língua leva anos a fazer-se, e confere um estatuto cultural. Quem escreve de acordo com as regras pertence automaticamente a uma élite bem escrevente, com os privilégios sociais que daí advêm.. Nunca se sabe tudo, mas convém estimar o que se aprendeu, porque não foi fácil adquiri-lo, e porque mudar hábitos custa; no caso dos meus alunos, também porque a aprendizagem é recente, e estão inchados com ela: vêm agora dizer-lhes que têm de desaprender?! E, para mais, a extraordinária arrogância dos 17 anos, diferente da dos 20, dos 30 e dos 40...
Recusam-se a ler livros em Português do Brasil. Não é Português, alegam. Dou o meu melhor explicando-lhes tudo o que aprendi sobre dialetologia, regionalismos, história da língua. Provam-me que é uma língua diferente porque os brasileiros dizem que usam terno e deixam crescer a grama nos jardins. Explico que os dois vocábulos têm origem latina, e que embora constituam, hoje, para nós, arcaísmos, foram os portugueses que os levaram para o Brasil, e que ainda se encontram em todos os dicionários. Reforço que ainda há poucos dias, em Páre, Escute e Olhe, documentário de Jorge Pelicano, ouvi um velhote de Trás-os-Montes dizer que não tinha grana. Ah, que isso é porque nas aldeias são muitos atrasados, não falam bem, argumentam! Tento fazer-lhes ver que nas zonas mais isoladas os vocábulos de uso antigo se mantiveram. Mas o Brasil não é isolado. Não é agora, mas foi. Enfim, uma luta diária.
Passam a palavra, e há alunos de turmas que não me pertencem a interpelarem-me sobre como é possível eu ser professora de Português e defender o acordo ortográfico e a alteração da língua. Olham-me como se fosse uma professora sacrílega.
Entretanto, os brasileiros riem-se. Os brasileiros e todos os africanos e timorenses que usam a nossa língua, que é deles, quotidianamente, como lhes serve melhor. A língua portuguesa, felizmente, é de borracha. Eu admiro sinceramente o que fazem com ela. Parece uma grande manta de crochet que vai crescendo com malhas e desenhos diferentes, partindo de uma mesma técnica.
As alterações no léxico e na grafia de uma língua são peixe miúdo. Como é que se diz refogado no norte de Portugal e batata na Madeira? O que pode realmente afastar o português europeu do que se fala no Brasil e em África é a fonética ou a sintaxe ou ambas. E contra isso, nada a fazer. Não é impossível que o Português, no futuro, venha a divergir conforme o continente onde é falado, formando novas línguas. Por questões políticas e económicas isso é assunto que não interessa aos falantes da variante europeia. Embora a evolução linguística tenha um profundo desprezo pela política e pela economia, por enquanto, não há que temer. O Português ainda se mantém uno - embora o documentário de Jorge Pelicano, gravado em Trás-os-Montes, estivesse legendado; e se ajudava!