O menino Italo Calvino

Italo Calvino e Jorge Luís Borges


Comecei a ler um livro de Italo Calvino intitulado O Conto de Fadas. A certa altura, Calvino escreve " Se numa época da minha actividade literária me senti atraído pelos folktales, pelos fairytales, não foi por fidelidade a uma tradição étnica [...], nem por nostalgia das leituras infantis (na minha família, as crianças só deviam ler livros instrutivos e com algum fundamento científico), mas por interesse estilístico e estruturas, pela lógica essencial com que são contados."
Ao lê-lo, senti que os parênteses continham um lamento de criança. Imaginei-o triste, sentado na biblioteca da família, privada, grave, lendo, não o que gostaria, mas o que lhe ordenavam; vi uma sala carregada com mobília escura, enormes estantes com porta de vidro biselado, nas quais se acumulavam livros instrutivos muito bem arrumados, catalogados, encadernados, iluminados invisivelmente por toda a sabedoria do mundo. E Calvino, com um volume pesado sobre o colo, lendo com a mesma dedicação com que outras crianças, pelo mundo fora, brincam ou se deixam esbofetear, hora a hora, sem qualquer dúvida sobre a pertinência das acções que os adultos para elas reservam. E tive pena da criança que foi, embora tanta solenidade e disciplina possa ter gerado o grande Italo Calvino. É provável que no passado de todos os italos calvinos exista uma criança triste, mas duvido que exista uma relação direta entre tristeza e saber.

Não pude deixar de recordar os meus hábitos infantis de leitura.
Quando ainda não sabia ler, lembro-me de folhear um livro que o meu pai guardava na mesa de cabeceira: tinha desenhos de um barco que se afundava e náufragos moribundos esbracejando. Devia ser uma história trágica e comovente. Desejava ardentemente aprender a ler para conhecer o seu conteúdo. Não sei se algum dia o li, porque mal comecei a juntar as sílabas dediquei-me com afinco às biliotecas alheias, onde existiam livros modernos, com capas bonitas. Trazia-os para casa e deitava-me no chão a lê-los, esquecendo-me que eu era eu, porque os livros me transformavam num veículo recetor em viagem, cujos órgãos vitais mantinham animado. O sangue circulava, o coração bombeava o sangue que os rins filtravam, e os pulmões insuflavam-se e esvaziavam-se por sua conta. Eu caminhava pelos cenários que o meu cérebro criava, sem consciência da realidade, e sabia-me bem, até a voz da minha mãe me restituir ao mundo, "Isabela, larga os livros e vai fazer o que te mandei". Na minha família líamos o que nos apetecesse, desde que primeiro tivéssemos lavado a louça, varrido o chão e puxado o lustro ao parquê com metade de um coco seco e um pano de lã. Essa grande indisciplina, não fazendo de nós italos calvinos, tinha outras vantagens: criava-nos, acordava-nos informalmente. Não lamento as leituras caóticas, frequentemente clandestinas, algumas vezes carecendo de "passaporte". O senhor Augusto, amigo da família, em cujo escritório mantinha uma biblioteca com mais de cinco mil livros, obrigava-me sempre a levantar a saia, até mostrar as cuequinhas, antes de sair com o braçado dos livros que me emprestava quinzenalmente. Suponho que a obra preferida deste grande literato das colónias fosse a Lolita.
E pensando agora bem, não é improvável que o menino Italo Calvino tenha sido obrigado a custear valores equivalentes, ao longo da infância, para aceder a livros de outras bibliotecas.

Mensagens populares