O verbo estar tá condenado

Ainda sobre questões de língua escapou-me o seguinte: costuma dizer-se que as línguas são organismos vivos. Uma metáfora, portanto. Mas as metáforas são o discurso. Vejo-as desenvolverem-se no meu cérebro como se lá dentro existisse uma sala dedicada a festivais de cinema experimental. Quando me dizem que a língua é um organismo vivo começo a vê-la multiplicar-se celularmente, atingir o estado da lagarta, passando ao da borboleta, imagino que se transforma em garça e depois em condor, e que vai subindo, chamuscando as penas de algumas asas, que depois se renovam.
Se a língua é um organismo vivo, está em permanente mutação evolutiva e involutiva, tal como eu. Fisicamente, perdi capacidades; a minha pele está uma lástima, as articulações, pior, e a minha memória já deu cartas, mas o cérebro, no geral, funciona melhor que nunca; se vamos perdendo neurónios, não perdi os que coordenam as capacidades verbais, que se apuraram nos últimos anos. Se involuí nuns aspetos, evoluí noutros. Como a língua.
Se a língua é um organismo vivo, existe limitadamente. Ou melhor, transforma-se noutra coisa qualquer, como eu um dia me transformarei em húmus ótimo para fertilizar alface, tomate ou batatas.
Se a língua é um organismo vivo passa por fases etárias, como eu. A língua portuguesa passou por diversos estádios e amadureceu bastante. Não é um organismo novo nem incólume. Entre as línguas românicas, a nossa é uma das que mais mutações sofreu, que mais se afastou do étimo, o que significa que tem sido largamente usada. Está cheia de cicatrizes, de acrescentamentos e reduções. É uma língua muito marcada, que tanto influenciou a vida de outros como se deixou influenciar. Tem andado por aí, tem-se metido à luta. Embora traga consigo muitas histórias, ainda tem cartas para dar. Encontra-se num estádio, como todas as outras línguas do mundo - cada uma no seu.
Quem usa a língua não pode partir do ingénuo principio de que ela vem do princípio dos tempos tal como se usa hoje. Não pode partir do princípio que a língua não tem fases, que não muda.
Esta língua que falamos e escrevemos hoje, aqui, é apenas mais um estádio, um plano, que já cá não estará dentro de décadas. Podemos vislumbrar, nesta altura, o que a nossa língua virá a ser dentro de 30 anos, ou mesmo 50. Por exemplo, alguém duvida que o verbo estar se encontra num processo de feroz redução para tar?! E não é por influência do sms nem do messenger. Não nasceu agora, embora só agora a escrita comece a registar essa alteração, a que tem resistido. Claro que quando se negociar o próximo acordo ortográfico, dentro de... 40 anos, um bebé que acabou de nascer há 10 minutos no Hospital Garcia de Orta estará veementemente contra mais uma delapidação do património linguístico.
Mas refiro-me tão só ao que o Português poderá ser dentro de 40 anos, porque dentro de um século nem Deus sabe.

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