As palavras são inocentes


Há uns anos atrás, falando com os miúdos sobre registos de língua e respetivos contextos, mencionei que certas palavras muito cabeludas da nossa língua, pelas quais eles manifestam particular apreço, começaram por ser vocábulos de uso corrente em tempos recuados, encontrando-se registadas em crónicas e textos jurídicos medievais sem conotações com baixa linguagem. Expliquei-lhes, por exemplo, que encontraríamos vocábulos desses na transcrição de testemunhos prestados a um tribunal, mas também em crónicas do paço.

Devo ter-lhes dito que mantenho afeto por essas palavras muito antigas cuja semântica se foi alterando, e corrompendo, e que só não as incluo no meu discurso, reabilitando-as, porque ninguém o compreenderia. Acrescentei alguma informação sobre a tendência para designar realidades e atos "menos próprios" usando o eufemismo, e de certeza que esclareci essa figura de retórica bem como a sua oposta. Deixei claro que para comunicar sem equívocos ou dissabores temos que adaptar o nosso discurso ao auditório. Podia ter-lhes dito, tout court, que o calão só é usado em contextos muito grosseiros, falado por pessoas de baixa índole, etc. Mas não é o meu género de aula, e os meus alunos sabem que eu não sou grosseira nem de baixa índole, pelo que posso partir desse saber prévio para lhes falar sem luvas de látex.
Confesso que nunca tive problemas com o método, e que os alunos saem-me sempre da mão com uma boa consciência linguística, sem complexos de maior relativos ao uso da língua materna, capazes de a usar com o máximo rigor expressivo, e sabendo muito bem explicar por que motivo as línguas não só não têm autor como possuem a capacidade de nos recriar como povo. Faço-lhes a cabeça sem dó nem piedade.

Mas voltando à história lá de trás. Umas semanas depois desta aula fomos em visita de estudo ao Palácio de Mafra, de onde D. João VI e D. Carlota Joaquina saíram em fuga para o Brasil. É o palácio mais mixuruca que já visitei. A guia explicou que tal se devia ao fato de os reis terem mandado embarcar o recheio do palácio. Seja. Há uma sala que se encontra repleta de chifres de veado, que embora se designem por outro nome, não deixam de ser cornos dos grandes e com ramificações. Carlota Joaquina terá incentivado muito o marido a enriquecer a coleção. Creio ter sido a sala na qual D. João preferia sentar-se.

Avancemos. Chegados aos quartos, a guia começou a explicar a quem pertenciam. Aquele era o do rei, o outro, o da rainha. E o amigo Tiago, na altura totalmente dominado pelo vigor das hormonas, cuja batalha tinha perdido, e, tal como eu, amante dos vocábulos verdadeiros, sem mancha, que valem apenas pelo que designam, sem juízos de valor associados, pergunta à senhora, dos píncaros da perícia linguística recentemente adquirida, e com o ar mais natural do mundo, se os reis fodiam no quarto dele ou no dela, lá mais adiante. A senhora fez uma longa pausa para cair em si, os colegas riram-se, e eu aproveitei para mudar de sala, porque temi não conseguir controlar-me. Oficialmente não ouvira nada, e, aliás, nem conhecia o Tiago de lado nenhum.
Do outro lado percebi que o garoto levava uma reprimenda subordinada ao tema “uma coisa é a irreverência própria da idade, outra a falta de educação”. O miúdo era meu aluno há três anos e posso jurar que travava luta inglória com o sistema hormonal, isso sim, mas nunca fora mal-educado. O incidente ficou por ali. Não houve queixas.
No exterior do palácio, vindo o rapaz defraudado, tive de lhe lembrar a parte em que lhes explicara ser necessário adequar o vocabulário ao auditório. Disse-lhe que algumas palavras tinham de se manter privadas. Ele só me respondia, mas stora, stora, é uma palavra sem mal nenhum. Ela queria que eu dissesse "faziam amor", mas eles nem se amavam, é ou não é verdade?
Sou incapaz de me lembrar disto sem me aparecer nos lábios um enorme sorriso.

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