Estou-me cagando
Veio cá a casa uma doutoranda em Sociologia colocar-me algumas questões inteligentes sobre o Caderno, às quais respondi, como sempre, com uma burrice exemplar. Disse-me que no seu doutoramento, no CES, em Coimbra, incluíram o livro numa das cadeiras sobre literatura pós-colonial, e que vão estudá-lo, estão a estudá-lo, qualquer coisa deste género. As pessoas tratam muito bem o Caderno e, por arrasto, dedicam-me uma atenção que nem sequer mereço. Como diz o Matt Damon ao canal E, parece que estou a viver uma vida que não me pertence. Não passo de uma professora do secundário cujos colegas costumam considerar incompetente por permitir aos alunos certas liberdades criativas.
Gostava de escrever mais, muito mais. Todos os dias me ocorrem ideias estapafúrdias e razoavelmente literárias, mas tenho tanto trabalho com as liberdades criativas que permito, que a literatura com caráter organizado tem ficado para último. Precisaria de umas férias longas, mas, como qualquer português dos que trabalham para ganhar a vida, sou levada a escolher entre o prazer de escrever e um ordenado certo que me permita pagar a renda de casa.
Tenho muito para dar à literatura, pensei há bocado. Depois reformulei, mentira, estou-me cagando para a literatura, em geral, e portuguesa, em particular. A literatura é que tem muito para me dar, na medida em que possa absorver o que me apetece escrever, não o que seja apropriado ou útil ou sirva os valores altíssimos do Sistema, seja qual for a tendência. Escrever umas redações a que outros chamam literatura dá algum jeito, permitindo poupar uma fortuna em psicanálise, e o efeito é o mesmo. O recetor é constituído por uma massa de cérebros e vozes capazes de articular huns-huns enquanto vou atirando à fogueira demónios impossíveis de queimar, debitando matéria, estabelecendo relações, sintetizando. De resto, estou-me cagando de alto para os temas importantes, para a ficção, para a narrativa, para a História, para ser muito séria e ficar bem nas fotografias. Não me interessa pensar a literatura nem os escritores nem definir-me assim ou assado. Se conseguisse definir-me não estaria tão destituída de ajuda para levar as cadelas à rua ou trazer-me medicamentos quando fico doente. Se encaixasse em algum lugar, alguma coisa podia dar-me ao luxo de ter febre, sofrer do fígado, de ciática e morrer nos braços de alguém dilacerado de desgosto. No meu caso, e em nome das cadelas que não têm culpa da mãe que lhes calhou, convém sobreviver saudavelmente. Os que dependem de nós impedem-nos de descarrilar, e por eles vamo-nos mantendo viáveis.