Já não consigo proteger-te


Sentou-se aos pés da cama enquanto eu lia a revista do Expresso do último sábado.
Já leste o que escreveram sobre mim?
Não tenho feito outra coisa no último ano, pai. – e continuei a ler.
É chato.
É incontrolável. Não posso impedir que te leiam da forma mais simples. Eu é que tenho de viver com a tua duplicidade. Eu é que tenho de me equilibrar no fio da navalha com o que foste e representas para mim. Para os outros és um homem como outro qualquer. Um ex-colono. Um retornado. Ninguém te deve nada.
Tu deves.
Eu?!
Tu és a minha filha. Uma filha… - calou-se.
Uma filha não desonra o pai, não é?!
Continuou calado, com os olhos no chão. Fechei o jornal.
Não estejas assim. Não interessa o que outros pensam de nós. Tens que te haver com a tua consciência como eu tive que me haver com a minha tantas, tantas vezes. Como tenho…
Como tens agora?
Como tenho agora. E não sei para quem é mais difícil esta situação, se para ti, se para mim, que tenho de viver todos os dias com essa culpa.
Arranja-te. Eu não pedi isto.
Pediste, pediste. Estiveste a pedi-lo muitos anos. Pedias todos os dias. Não sabias, mas eu escutava esse pedido endereçado pela tua moral vestida de preconceito.
Ainda não consegui perceber como é que a minha filha querida, o meu tesouro…
Devias aceitar-me. Eu aceitei-te. Não podia ser de outra forma. Achas que podia alterar a ordem das coisas? Restava-me viver com isso o melhor possível. E fi-lo. Quanto ao resto, desculpa, mas já não está na minha mão proteger-te.
Mas garantiste que ias tentar.
Tenho-o feito o mais possível. Tenho dado o litro para te humanizar, mas uma coisa são as minhas declarações, outra o livro, que tem vida própria. As pessoas tiram as suas conclusões. Não posso ir a casa de cada um esclarecendo, Olhe, se faz favor, durante a leitura do próximo capítulo lembre-se que as pessoas não são perfeitas, nem ele nem eu nem o senhor…
Enfim, o que havia de te ter dado para escreveres o raio do livro.
Rio-me.
Se eu te disser que quando saí de Lourenço Marques já pensava escrevê-lo, acreditas?
Isso foram ideias que os teus amiguinhos comunas te meteram na cabeça. Eras uma garota quando saíste de Lourenço Marques.
Mas não era parva. Guardei estas memórias com um cuidado que não podes imaginar. Tinha-as cristalizadas, muito intensas. Fui deixando cair lembranças acessórias, seleccionando. No final ficou só o essencial, até porque o meu cérebro precisava de espaço para registos posteriores.
Abriste a caixa de Pandora. Eles até dizem que eu fui um grande consumidor de prostituição.
Deve ser por causa da cona das pretas.
Não te ensinei essa linguagem. Nunca me ouviste falar dessa maneira. E nunca fui consumidor de prostituição.
Olha, a mãe conta que quando chegou a Lourenço Marques, e andava contigo na Wolkswagen, às vezes iam a obras fora da cidade, e que as pretas começavam a aproximar-se da carrinha vindas não se sabe de onde e ficavam à tua espera.
Ah, isso, a tua mãe… ela não percebia. Eram umas pretas que a gente conhecia… era uma troca de favores, não era prostituição. Bebíamos umas cervejas, que as pretas bebem bem. Mas só os solteiros que viviam na pensão da Pureza. E isso foi só antes da tua mãe chegar.
Eu não sei, não vi nada. Ouço, apenas.
E as pretas não eram como as portuguesas. Para elas era tudo natural.
Imagino. Isso devia dar-vos um jeito…
Eh, pá, tu estás como os outros. Queres analisar a vida daquele tempo, em África, à luz daquilo em que vocês acreditam hoje.
O que eu sei é que podias, como diz um amigo meu, ter controlado os ímpetos. Conhecendo-te, deixa-me dizer-te que não me parece nada estranho que tivesses dado grandes machadadas no casamento, com negras, não sei em que termos, e com brancas, e sobre isso estou melhor informada.
Ora esta. A tua mãe bem podia estar calada.
Isso tens que lhe ir dizer a ela, mas tem cuidado com a forma como lhe apareces que ela está com 87 anos e um coração fraco.

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