Mi obsesión

Antonio Skármeta

Aos escritores tenho medo que me pelo! Se ao menos fizessem a barba. Apanho-lhes um ar grave, triste ou presumido. Por vezes os três juntos. Em Portugal, meteram na cabeça que têm de dizer coisas de tal forma solenes, que de tanto vigiarem o discurso nada de verdadeiramente belo lhes sai. Deixam-se fotografar em sítios horríveis, cheios de papel velho pelo chão, como se o apocalipse nuclear acabasse de varrer a Terra e só eles se tivessem salvado, porque são inteligentes e sofridos ou porque pertencem a uma casta a proteger. O meu maior pesadelo seria meterem-me numa mesa de escritores para discutir assuntos literários sérios. Metam-me sempre em mesas de pessoas que não queiram ser senão gente e tragam-nos vinho e pastéis de bacalhau à discrição, que nos entenderemos.
Pelos motivos apresentados, raramente vejo entrevistas a escritores. Não há água suficiente para tamanha seca.

Assisti a uma entrevista televisiva a Antonio Skármeta, por mero acaso, enquanto estive no Havai – felizmente a RTP2 chegava ao hotel graças a uma potente antena parabólica mandada instalar por um instituto português que se encarrega de divulgar no estrangeiro a nossa língua e cultura, o que faz, das 9 às 5, com uma dedicação e amor à causa nunca vistos. Conhecia vagamente o nome de Antonio Skármeta por associação ao filme O Carteiro de Pablo Neruda, a que assisti uma vez ao lado de um aluno cego a quem fui recontando todos os diálogos, e isto não se esquece. Contudo, nunca li nenhum livro de Skármeta até ao momento em que escrevo este texto, e não tinha até aqui qualquer motivo para me interessar por ele. Vi a entrevista porque o homem tem um sorriso lindo que me fascinou. Um escritor a sorrir, hein?!
Deixei-me ainda prender pela sua simplicidade e naturalidade, pelo castelhano lento e rombo do continente americano, com que se exprime, e porque o início da conversa referenciou o amor como tema importante na sua escrita, e pensei para mim, deixa lá ver como é que te espalhas, se será ao comprido, ou se ficas apenas sentado no chão? Tive esta curiosidade. E fui má, descrente.
Escrever e falar sobre amor, nos dias de hoje, que coragem! Deixei-me estar com uma pinha colada na mão esquerda e o comando na direita, esperando pelo segundo em que poderia finalmente mudar para a SIC Radical onde apanharia, de certeza, um episódio antigo do Seinfeld. A SIC Radical também é muito vista no Havai.
Não mudei o canal. Durante os 46 minutos da entrevista, Skármeta mantém com o jornalista uma conversa sem tiques, sem complexos, falando sobre o amor e a vida com calma e sabedoria. Eu não conseguiria cortar o texto da entrevista: não tem partes menos boas. Surpreender-me-ia muito que este homem escrevesse mal.
E o que diz Skármeta, afinal, sobre o amor, esse sentimento tão caro à literatura, porém tão maltratado pelos escritores desta geração e da anterior, que declararam a sua morte para instaurarem o reinado do mal, perversidade, vazio, caos, incoerência, solidão, bla, bla, bla, como se eu e a malta aqui do bairro desejássemos menos que luz, lógica e felicidade para alimentar a nossa alma e a dos nossos filhos a pão fresco e rosas?
Oferece-nos o que se diz do amor desde a Antiguidade. Que constitui o centro à roda do qual tudo se constrói ou destrói numa vida humana. Que é uma teia. Que é obsessivo. E eu, que tentei fugir a essas garras de rapina, as neguei, que jurei a quem quisesse ouvir-me que não importavam para mim nem, aliás, para ninguém, escutei-o beatamente. Sim, é isso, que simples! O amor obsessivo, na presença ou na ausência. É igual. O amor que se consuma não atormenta mais do que aquele que se deixou passar. Obsessivo. Teimoso. Manso e bravo à vez. Aos repelões, porque ou é como eu quero ou não é, meus senhores. É isso, o amor.
Quando a entrevista acabou, sorri como Skármeta, e procurei uma folha de papel na qual escrevi ao meu amor, na Bessarábia, a milésima carta que os carteiros nunca fizeram o favor de lhe entregar, e na qual lhe pergunto, logo a abrir, e para poupar latim, meu querido, quanto tempo mais manterá a inútil, longa guerra tão distantes do meu peito morno essas mãos que anseio beijar?


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