A propaganda da pobreza

Gostava de governar Portugal. Juro. É francamente fácil governar meia dúzia de gatos pingados que se deixam enganar, roubar, e permanecem caladinhos, convictos de que o mereciam, de que a culpa lhes pertence totalmente, os preguiçosos, incompetentes, e o Governo, coitado, não tem outra solução. Há melhor contexto para se deter o poder?!

Os países europeus com salários mínimos de 800 euros entram em convulsão social porque lhes tiram o subsídio de centro comercial, e nós ouvimos as notícias e pensamos com os nossos botões, ah, coitadinhos dos nossos governantes que têm de nos dirigir, pois o que hão-de eles fazer?!, é a vida. Temos de sofrer. E seguem-se as peças sobre a caridade, os sem abrigo, o Natal das famílias antes remediadas, que agora descem à rua para recolher lautas refeições de bacalhau no forno com batatas fritas e arroz distribuídas por legiões de voluntários que não são capazes de dar abrigo a um cão morto de frio. Por um prato daqueles também desceria à rua, se cá viessem. É pratinho que, dividido por taparuéres, daria bem para três refeições. E segue-se o casamento do sem abrigo que arranjou uma noiva empregada doméstica, e mais o Natal dos Hospitais, e as reportagens dos programas da manhã e da tarde: a pobreza envergonhada, as instituições necessitadas de apoio, as ajudas de berço e de cama e de sofá. Uma valente injeção de propaganda sobre a pobreza. Que felizes que somos! As estrelas de telenovela dão a cara para afirmar inteligentemente que teremos todos de aprender a ser pobrezinhos, mas que não faz mal desde que se continue honesto, remendado e lavadinho. Que temos de pensar na abundância de que beneficiámos nos últimos anos. Olho para o écrã como se me tivessem acabado de esmurrar o nariz. Qual abundância dos últimos anos? Não dei por nada. Eu até me tornei cliente do Minipreço! Dei foi por ir a Vigo comprar cabazes de supermercado bem mais baratos do que os que componho deste lado da raia.

Estamos felizes com a crise. Agora, sim, já somos pobrezinhos a sério. E vamos passando esta mensagem na rua, no café, no emprego, o que é preciso é saúde, vão-se os anéis, fiquem os dedos, um bom natal, apesar de tudo, que bacalhau não nos faltará nem uma fatia de bolo-rei. E depois logo se vê.

Somos uns bons. Atiram-nos a chão e não nos levantamos. Não vale a pena porque não temos sorte, sabemo-lo bem. A senhora do café diz que isto, dona Isabela, é derivado da ditadura. Fomos muito amordaçados, amesquinhados. Mas a senhora do café não sabe que eu percebi que o que somos não resulta da ditadura. Pelo, contrário, a ditadura só encontrou terreno livre para progredir porque sempre fomos o povo que hoje se nos apresenta. Nunca precisámos da ditadura para nos amordaçar, amesquinhar, destituir. Fazêmo-lo sozinhos, mas já se sabe que com ajudinha das instituições que detêm o poder, e boa promoção mediática, a obra é perfeita.

A maior parte dos portugueses tem saudades da ditadura. Ordem, contenção, tudo o que é valor tradicional transformado em bandeira. Não se viam estas desgraças. Nem havia homossexuais nem pedófilos. Nem cancro nem vícios nem a corrupção da internet. Belos tempos!

Entretanto, sabemos todos que a partir de Janeiro nos vão roubar uma fatia significativa do salário, sendo que antes já não chegava, mas tem que ser, não é? Pois é. Também aumentaram os impostos no início do ano, teve que ser. É a vida, meu amigo. Somos portugueses... escumalha. A gente desenrasca-se!

E a 1 de Janeiro sobem os preços de todos os bens de consumo de primeira necessidade, transportes, gás, eletricidade e o resto por arrasto. Até parece que acabaram de aumentar indiretamente a percentagem dos cortes salariais na função pública. Parece, mas não deve ser. E se for é porque não há outra solução. O que interessa é que haja saúde, e um bom Natal, ó Silva, tenho aqui esta garrafinha de Bushmills que estava no Jumbo a metade do preço. Ganda promoção, meu amigo! Um feliz natal, muitas filhozes, a barriga cheia e quentinhos. E eu vou passando e pensando, quentinhos só se for com os efeitos do álcool, porque convém não ligar os aquecedores. Felizmente, a Ideia Casa comercializa, agora, um cobertor com mangas que nos permite estar quentes e usar o comando de tv sem destapar os bracinhos. Eu juro que tenho vergonha. Não contarei isto aos meus amigos espanhóis, suecos, irlandeses, que antes não compreendiam como passávamos o Inverno sem aquecimento central. Um cobertor com mangas para andar por casa. Se me disserem que lhes contaram, desminto. Haja algum pudor.

O senhor Presidente da República foi ao Natal dos sem abrigo dizer que é preciso ajudar, que é preciso arranjar oportunidades de vida. E eu perguntei à dona Ermelinda, que estava mesmo ao meu lado a ver o telejornal, mas a senhora lembra-se de este homem ter feito alguma coisa para ajudar ou arranjar oportunidades enquanto foi primeiro-ministro ou presidente? O que entende ele por ajudar e conseguir oportunidades? Será a caridade? Será o belo do bacalhau do forno que distribuem em Santa Apolónia, à noite, que aquilo até lhes deve dar indigestão, e no dia seguinte terão de beber mais vinho para ajudar a empurrar o colesterol do bucho?!
Ah, dona Isabela, mas é um senhor tão honesto, com uma família tão bonita, e a esposa até é professora de Português como a menina!

Tem razão, dona Ermelinda, o que é preciso é saúde e umas boas entradas e melhores saídas. Sobretudo saúde, e não é mentira nenhuma, pensando no serviço prestado no Hospital Garcia de Orta, quem é que não precisa de saúde?!

Dizem que lê portugué son tujur gé. Eu tenho outra versão: lê portugué son tujur masoquiste hardore.

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