Era educadora de infância

Não me agrada comentar casos da atualidade muito em cima do acontecimento, mas o caso da senhora da Rinchoa, morta no chão da sua cozinha durante quase uma década, é demasiado perturbador, e coloca-me algumas questões.

A primeira delas tem a ver com desmerecimento de que hoje são vítimas os velhos.
Quando eu era pequena os velhos contavam com os filhos ou os familiares mais próximos. Eram chatos, os velhos, como hoje; eram exigentes, davam trabalho, mas olhar por eles era uma obrigação moral que recairia sobre alguém. Ora, a obrigação moral que nos implica no cuidado aos velhos não se alterou. Não só carecem de ajuda para se mexerem, vestirem, lavarem e comerem, como precisam de quem fale com eles, lhes dê atenção, os leve à rua para apanharem sol e verem gente, flores. Carecem de dignidade. São os nossos velhos, os que cuidaram de nós! As suas necessidades são muito semelhantes às das crianças. Contudo, às crianças tudo se dá e aos velhos tudo se tira, como se ao chegar a uma etapa final da vida se merecesse menos, como se já nada se valesse.
Um dia destes, no café onde costumo beber a bica, uma vizinha que cuida de uma idosa minha conhecida dizia alto à sua interlocutora que as coisas já não podiam ser como a velhota queria, referindo-se ao banho. Incomodava-a que a velhota quisesse tomar banho uma vez por semana. Alegava que, não saindo de casa, não se sujava, logo, não precisava de tanto banho. A história indignou-me, pelo que, quando me levantei, cumprimentei a senhora, e disse-lhe, com delicadeza, que devemos fazer o gosto aos velhotes, e que gostar de tomar banho é um bom sinal. Não sei o que terá pensado nem me interessa, mas fiquei com a ideia de que não podemos delegar totalmente o cuidado dos nossos velhos a outrém. É absolutamente necessário vigiar e apoiar o seu quotidiano. Temos de estar presentes, mesmo que não sejamos nós a fazer-lhes o almoço. Nunca deixa de ser a nossa responsabilidade. Que mundo é este onde se aceita que quem se dedicou aos outros a vida inteira não merece, quando chega a sua vez, igual dedicação?

A senhora da Rinchoa não tinha filhos, mas existiam familiares que nunca se interrogaram sobre o seu desaparecimento. É provável que não fosse seu hábito festejarem aniversários ou feriados religiosos em conjunto, contudo, é muito estranho ninguém se interrogar sobre o paradeiro de uma mulher de 87 anos e respectivo cãozinho.
Morto o marido, a senhora do 4º andar da Rinchoa ficou sozinha com o cão, seu único filho, seu único parente. Fiquei a saber pelas notícias que esta senhora toda a vida foi educadora de infância, o que é a suprema ironia.

A minha segunda questão prende-se com o procedimento das Finanças. Imaginemos que esta senhora, afinal, estivesse viva na sua casa, mas não possuísse meios para pagar uma dívida de 1500 euros, ou que, eventualmente, não tivesse percebido as implicações da dívida.
Neste momento, se estivesse viva, e em nome de uma dívida de 1500 euros que rendeu 30 mil ao Estado, a velhota estaria na rua sem ter onde dormir. Isto constitui a prova da total desumanização das instituições para as quais contribuímos. As Finanças não sabiam que se tratava do imóvel de uma viúva? Ninguém tentou estabelecer diálogo com a senhora indo bater-lhe à porta?
Há menos de um ano, um emissário das finanças arrombou a porta de uma vizinha do meu andar que devia seis meses de renda ao senhorio. Tenho dificuldade em compreender os critérios para arrombamento de portas, mas algo me diz que tudo isto é aleatório, exceto a cobrança da dívida soberana.
Há gestores a ganhar centenas de milhares de euros mensais para tomarem decisões deste género.

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