Faça-me a gentileza

Sá de Miranda, Camões, Pessoa, os outros, uma lista sem fim, nunca compreendi, juro, o que leva gente de carne a transformar pensamentos, visões em linhas, versos, e estes em, como é que se diz?, poemas, quando poderia, muito naturalmente, comer, trabalhar e fornicar, que não se precisa de mais.
Ontem à noite foi-me revelado o mistério: os poetas não estão vivos. Por exemplo, no dia em que Pessoa morreu já tinha morrido. Não nego que não andem por aí almoçando em cantinas, trabalhando com péssimo horário e fornicando quatro, no máximo seis vezes ao mês, é certo, mas relutantemente. As suas vidas não possuem, caramba, semântica, e mais abrangentemente, gramática. São vidas agramaticais. Deveriam ter-se declarado à Ofeliazinha, mas esqueceram-se. Tinha-se acabado o papel para carta, a tinta permanente, sobretudo o sentido das prioridades. E a Ofélia, coitada, foi ficando para tia, deitando o olho míope à caixa do correio.
Os poetas deveriam ter apanhado o comboio para a paragem seguinte, mas estava-se tão bem ao sol nesse dia, pelo que a máquina parou mas ninguém subiu. Foram ficando pela estação com a mala de carneira cheia de nomes brilhantes como sol, como luz, como areia, como rosto, e aproveitaram o transporte que seguiu, um qualquer, por acaso a caranguejola.
Agora vivem tristes, quer dizer, quando se lembram, quando vão sozinhos ao hipermercado comprar resmas de papel para a impressora e mandar encher os tinteiros no Smart Cartridge. Não é bem tristes, é um vazio, um pavor da vida, do que poderia haver se ousassem, meu Deus, encher o peito de ar, enchê-lo bem de ar e respirar três vezes. Se descerrassem os lábios colados com cuspo seco e chamassem a Ofeliazinha, cá de baixo, a menina desculpe, tenho-me atrasado, trabalhos, finanças, becos, a menina desculpe, estará livre para um passeio logo à tarde? Faça-me a gentileza.
Mas sacodem a cabeça, isso não; os poetas, já se sabe, sofrem em silêncio, infernizam. Uma tragédia. Se não morrem de doença do fígado, dos miolos, de fome, que ao menos seja por ausência de semântica. Isso justifica toda uma vida dedicada ao valor supremo da arte de descrever uma magnólia sem usar o vocábulo ou qualquer outro semelhante, como portefólia, sistólia, Mongólia.
Os poetas sorriem, mas não estão a sorrir. Não falam, não ouvem, não veem, não usufruem sensações, e escrevem que lamentam ter abdicado dessa forma de vida. Calor, frio, doce, amargo, macio, áspero. Usufruir, não. Desculpa, Ofélia, querida, mas afinal não dá. Paciência, sofro eu, sofres tu e mais as minhas irmãs, a tua, as tias, os poetas que me visitam no Martinho. Sofrem todos, mas tomei esta decisão. É uma nóia sem explicação, dizes tu, bem sei, será, mas deixa, é uma decisão, está decidido. A trabalheira que daria viver, mudar itinerários. Não, não, fiquemos por aqui, cada qual no seu cantinho, morrendo sem alarido. Incompletos. A meio corpo. Todos ao meio. Sejamos próprios, moderados, silenciosos. Não escandalizemos o pai nem a mãe. Temos obrigações. O que se espera de nós! Não precisamos de viver, escrevamos. Isso sim, fica muito bem na história da literatura, e chega.

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