A perfeição da nossa aristocracia

Escutar discursos políticos, em Portugal, é penoso. Reina a falta de originalidade, de espontaneidade; deputados e ministros usam a mesma cábula de frases feitas e vocábulos "adequados" com que vão polvilhando as banalidades que proferem. Passando para a arraia mais miúda, como membros partidários, funcionários públicos com responsabilidades e secretários de estado, a coisa piora: vigiam cada advérbio, cada conjunção ou locução conjuncional não vá dar-se o caso de usarem aquela que não agradará ao superior hierárquico. Toda esta gente é perita em falar dizendo nada. Saem discursos a metro, literalmente vazios, nos quais a palavra mais vezes usada é democracia. Por exemplo, na noite de 23 de Janeiro, dia das eleições presidenciais, ouvi-a tantas vezes, proveniente de tantos setores, que a certa altura me apercebi de que eles e elas, ao pronunciar "sistema democrático" ou "em nome da democracia" não estavam realmente a referir-se a um método governativo. O que se evocava com o vocábulo democracia era uma certa ideia de "regimento político". Regras, procedimentos a que se habituaram, sem os quais não sabem funcionar, e que não interessa atualizar. Em suma, democracia significa para toda esta gente que manda em nós, que decide o que vamos comer hoje ao almoço, "rotina à qual nos habituámos". O rigor expressivo, a semântica da coisa evaporou-se.

Mas lembremos o étimo: (demos: povo) + (cratos: poder, Estado). Explicitando: a democracia é um sistema de governo no qual o poder reside no povo, que elege os seus representantes, ou seja, os que falam em seu nome na assembleia decisória. Aprendi isto no 10º ou 11º ano, quando se estuda a democracia ateniense. Toda a gente aprendeu o mesmo. É elementar.
Continuemos, para chegar onde me interessa: no actual sistema de governo elegemos representantes, sem dúvida, mas a seleção dos mesmos é feita de acordo com critérios que ao povo escapam completamente. Quem elege representantes não somos nós, mas as estruturas partidárias. Estamos a milhas desse processo. Logo, os que opinam e argumentam na assembleia decisória não falam em nome do povo, mas da estrutura que os nomeou. Parece-me, assim, que o povo não está representado em lado nenhum e nada se faz em seu nome. Até suspeito que isto não tenha qualquer afinidade com a ideia de democracia. De maneira que ando com a impressão que vivemos numa espécie de aristocracia viciada e não assumida. Trata-se de um sistema de governo no qual uns poucos se governam à vez, uns para os outros. Nós somos, todos os dias, vassalos contentes.

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