A mulher-cão

Fui ao Garcia de Orta visitar um senhor do bairro que está há mais de três dias nos cuidados intensivos devido a um desgosto amoroso. Fui a pé, que a médica mandou-me caminhar uma hora por dia, ou isso ou quinze minutos de sexo, e eu respondi-lhe, doutora, sexo, com homem da minha idade, o melhor que consigo são três minutos, e, e...; só se arranjar um jovem garanhão com a verga... mas isso sai-me mais caro, e o meu ordenado, desde Janeiro, a doutora deve saber...
Muito bem, fiquemo-nos pela caminhada, concordou.
Tinha eu passado a superesquadra da PSP, ao Pragal, e aparece um cão meu conhecido. Um cão com pedigri, bem posto.
Queria mesmo falar consigo, disse. E explicou-se. Isto. Aquilo. Etc. O que hei-de fazer?
Quando os outros me contam a sua vida, vejo-a tão clara como a planta de um plano de emergência em caso de incêndio, com as saídas bem assinaladas, portas, janelas, escadas. O que eu sou é especialista na vida dos outros.
Bem, meu caro Bobi, respondi-lhe, não tens qualquer hipótese de entrar pela porta da frente. Nunca deixam os cães entrar. Podes tentar aproveitar-te de uma distração, nessa ou noutra entrada qualquer, mas digo-te, o teu objetivo não vale o esforço. Esquece isso. Distrai. Pensa noutra coisa. Arranja um osso com muita carne agarrada.
Ele baixou a cabeça, triste. Pareceu aceitar. Está bem, está bem. Se acha...
Segui caminho até ao hospital. O senhor do bairro que quase morreu de desgosto amoroso, conversava animadamente com uma auxiliar de ação médica com os peitos avantajados, e iam transferi-lo para a enfermaria. Não disse nada, mas pensei com os meus botões, isto, quando uma pessoa sofre de uma adição, é muito difícil curá-la.

Hoje, por um acaso fruto da extrema pequenez do mundo, vim a saber que o Bobi não seguiu o meu conselho. Ignorou-me com desprezo total pela minha experiência. Entrou pela porta da frente à descarada, descobriram-no e deram-lhe o maior pontapé da sua curta história de vida. Tendo tomado conhecimento do acontecido, houve um momento inicial de choque. Não confias em mim, é? Achas que ando aqui quase há 50 anos só a gastar as solas? Consideras-me uma mentirosa, uma fraude? É isso, ingrato? Mas, repito, foi um momento. No seguinte, senti uma ponta de orgulho por me ter desobedecido. Arriscou, o cão. Ignorou-me. Não acreditou em mim. Considerou a minha experiência de vida tão triste que a recusou e avançou sozinho. Fez bem. Um cão não veio ao mundo para dar ouvidos a conselhos de gente. Sorri. Assim é que é, traste canino. No teu lugar teria feito o mesmo: objetivo: porta da frente e mijadela nas botas do securitas.
Orgulhei-me por ele e por mim, e é fácil de explicar: ele recusa-se a pensar como gente e eu ainda consigo pensar como um cão. Resistir é isto.

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