Funcionária cansada

Eu preferia ser uma funcionária vulgar, que chega às nove e larga às cinco, que se senta à secretária datilogrando documentos, calada.
Se da minha janela avistasse aquele pássaro chilreando na árvore do pátio, não lamentaria estar entre paredes, porque breve sairia à rua sem papéis nas mãos, e poderia sentar-me no passeio, o resto da tarde, vendo as pessoas caminhar com a sua pressa, a sua dor.
Quem sabe se não enganaria o meu chefe, passando um texto clandestino, desde que mantivesse a mancha gráfica de uma carta confirmando a encomenda de 500 pares de sapatos!?
Se os colegas me traíssem, porque convém não ser demasiado inocente, mesmo nos sonhos, traíam-me só das nove às cinco, e quando o chefe me chamasse, baixaria a cabeça, pediria perdão, prometendo não voltar a acontecer, muito humildemente. Regressaria a casa para escrever e dormir, e não teria de interromper um relatório, uma ata, um plano, tudo estéril, relambório, para rabiscar uma frase emergente sobre o sabor amargo do meu café com leite.
Queria ser uma funcionária simples que chega ao emprego com a cara limpa de ter dormido, e que dormiu sem apelo. Que não precisa de fazer de conta que tudo está normal, porque tudo está normal. Era só isso que eu queria, e é tão pouco.

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
e as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa", 1960

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