A memória é ficcional

Deixo-me fascinar pela traição da memória, pela a sua imprecisão espacial ou temporal.
É possível que aquele passeio na Ponta Vermelha, num domingo com o pôr-de-sol mais salmão que pudemos testemunhar, tenha ocorrido num sábado, e que afinal fosse a manhã a despontar. Se calhar não foi na Ponta Vermelha, mas o chão do lugar era dessa cor.
A memória é um jogo de Lego cujos elementos se arranjam e rearranjam segundo uma lógica que, por muito que nos ultrapasse, tem a sua lógica. A importância de uma memória consiste no acontecimento que se guardou, um trapo rasgado de informação sobre um momento excecional, que por esse motivo não se apagou. Há uma história de datas que precisará dessa informação, mas a minha história segue outras regras. Todos os anos tenho de rever as que marcam o nascimento e a morte dos autores que ensino. Não consigo fixá-las, lamento. 1589? 1789? 1888? 1945? Consigo reconstituir de memória uma assinatura literária, versos, excertos de texto, mas não me exijam o débito do calendário. Para mim, o espaço e o tempo são resto, são ficção

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