"A minha África é uma história que cada um de nós carrega em silêncio"

A minha África é uma história que cada um de nós carrega em silêncio, sem nunca lhe mexer. Porque magoa. É uma história com apenas quatro personagens: o jovem goês; a negra, menina-mulher, sozinha na beira de um caminho de poeira vermelha a chorar, sem homem e sem filho; a enfermeira, a mais bonita do lar da rua da Sociedade Farmacêutica, que se casou com o goês e fez seu o filho da negra; o menino sem memória, mulato, que se aninha no colo da enfermeira portuguesa e lhe pede “mamã, faz-me cabelo de branco”.

A reação do velho pai goês sentado ao aquecedor é semelhante à dos pais, mães e tias dos meus amigos. Uma vergonha! E pior, escrito por uma mulher educada. É que se fosse um homem, quem não sabe como é que os homens pensam e falam! Mas uma senhora! Ou se fosse um livro estrangeiro. Duma brasileira, duma americana, duma francesa, todas licenciosas. Mas de uma portuguesa batizada!

Era de esperar que pusessem o livro de parte ao primeiro sinal de calão, mas não é o que tem acontecido. Continuam a leitura. Sabe-se lá quantas vezes mais a escritora repetirá os odiosos vocábulos, e leitor empenhado deve escandalizar-se até ao fim, o mais possível!

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O que menos importa no Caderno de Memórias Coloniais é a cona e a foda. Ou melhor, importam na medida em que são vocábulos interditos, logo, violentos. Preciso constantemente dessas palavras, que saem como cargas de porrada. Gosto delas quando escrevo. Ninguém me apanha um inefável, pelo menos a sério. Do que eu gosto mesmo é da cona, do grelo, do pardal à chuva. Tirem-me tudo, mas deixem-me a cona.

O Caderno, quase na 5ª edição, que divulgarei oportunamente, é, para mim, um texto sobre perda, múltiplas perdas. No entanto, atingiu uma autonomia que lhe permite escapar à proteção das minhas asas, se é que alguma vez lá esteve, tornando-se no que quiserem fazer dele. O que representa para mim deixou de interessar.

Há apenas um aspeto que sinto necessidade de repetir até à náusea, uma vez que não me parece clarificado - os diversos setores do nosso panorama literário resistem muito ao género* dentro do qual a minha escrita se inscreve, pelo que, se puderem guetizá-la, não hesitam. Partindo, embora, de memórias da minha infância e adolescência, o Caderno é um texto literário, com todas as implicações que isso tem. É um texto literário do qual se podem apropriar a história, a antropologia, a sociologia, a psicologia, como tem vindo a acontecer, mas será sempre, antes de mais, literatura.

Agora, só para a Ana Cássia Rebelo, que não conheço, uma ameaça séria: eu também sei o que representava ser goês em Lourenço Marques, portanto, vejo duas hipóteses: ou eu reconstruo toda essa história, e os dados fornecidos bastam-me [meto-lhe umas conas pelo meio, prometo], ou escreve-a a Ana, que a mantém em tão excelente vinha de silêncio. Eu, cá por coisas, escolheria sempre a segunda.

* Uso o conceito "género" para me fazer entender com economia de meios. Não pretenderia inscrever-me num género nem num subgénero, pelo menos no respeito pelos conceitos da teoria da literatura clássica.

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