Paguei

As coisas com o meu amor andavam mal. Nesse Verão fui de férias sozinha. Talvez não seja despiciendo esclarecer que nunca conhecemos juntos umas férias de verão, a relva verdinha, as árvores, os passarinhos, as amoras negras das silvas, os mosquitos. Passou-nos tudo ao lado - ele só tinha dinheiro para o passe, que acabava na Cruz de Pau ou em Corroios, era uma coisa assim. Namorávamos na rua que desce até à Amora, junto ao depósito da água, passando por umas amoreiras velhas junto a uma casa branca que não sei se ainda lá está. Quando chovia beijávamo-nos debaixo das varandas e chegávamos a casa ensopados de riso e contentamento.

Eu tinha-o visto namoriscar e não gostei. Meu filho-da-puta, hás-de ver quem se sai daqui a rir, e fui de férias sozinha, pensando, hás-de ver, hás-de ver, cheia de raiva, mas acreditando, sem dizer, só lá no centro de lava do meu cérebro, hás-de voltar, porque não vives sem mim, sabes perfeitamente que não vives sem o meu alento, arroubo, sem o calor da minha barriga. E fui de férias sozinha para lugares onde encontraria relva fresquinha, amoras, mosquitos.

Como habitual, o meu vasto conhecimento de línguas românicas, germânicas e aparentadas levou-me a conhecer um indivíduo que na mesa ao lado pedia um chá sem conseguir fazer-se entender. Chamava-se Donald e transportava uma história de amor trágico. Comovi-me. Vivia nas imediações de Londres e viajara para o norte de Portugal decidido a procurar uma namorada que lhe fugira sem explicações. Sabia, de fonte incerta, que estaria pelo Minho. Nós estávamos no Minho e eu disse-lhe, descrente, look, Minho is a huge place. Ele já tomara consciência, mas andava de parque de campismo em parque de campismo, procurando a sua metade fêmea. Nessa noite tínhamos jantado bem, bebido álcool depois do chá, estava fresco, e Donald sugeriu que dormíssemos na mesma tenda para nos mantermos quentes. Respondi que não. Nem pensar. Tinha aprendido a dizer não, era uma estratégia de defesa do território. Não, ponto final. Mas sorri com os meus botões. Achei graça. O homem era uma estampa, tinha frio, estava frio, e dois sacos-cama aqueciam melhor, era bem verdade, e quem podia garantir-me que a proposta fosse desonesta. O homem era tão espiritual. Tinha rapado o cabelo à gilete como prática simbólica. Desejava renascer. Não tinha espelho e estava todo escortanhado. Metia dó. Um cristo. E eu, que passava a vida debatendo-me entre o que achava correto – confiar no outro – e o que a minha mãe defendia enquanto política de aproximação ao estrangeiro – desconfiar sempre – considerei que estava na hora de conceder uma hipótese à confiança. Não ia acontecer coisa alguma. Sentia-o. Era uma intuição e as mulheres não se enganam nisto. Era mesmo um fulano espiritual, uma mente aberta, à frente, de outra cultura, um romântico à procura da namorada que o abandonara. De maneira que fomos buscar o meu saco-cama e enfiámo-nos na tenda dele, mais espaçosa, tapámo-nos muito quentinhos e fodemos toda a noite como coelhos de cobrição.

Lembrei-me dele porque era neo-zelandês, de Christchurch. Estava em Londres por mor de trabalho. Ainda tenho um livro que me ofereceu. Literatura de auto-ajuda, sobre como limpar teias de aranha e lágrimas. Nos quinze dias que se seguiram, andámos os dois à procura da namorada dele, e se continuámos a foder duas vezes por dia foi apenas por uma questão espiritual e higiénica, porque os homens e as mulheres se completam e Deus quer, mas sobretudo, sobretudo, sobretudo porque era fucking great.

Sentia-me aconchegada, porque uma mulher, conseguindo ver a luz ao fundo do túnel em vida, transtorna-se; aliás, a boa foda, genericamente, transtorna, e nesse verão queria que o meu grande amor fosse pintar paredes a tinta de água para onde lhe apetecesse, que namorasse, que me enciumasse, que metesse o rabo entre as pernas, que comprasse um passe para Setúbal, para o Inferno que o carregasse, que se evaporasse.

O que eu gostava de andar metida na tenda com o neo-zelandês e de o levar a foder nos mesmos lugares onde tinha fodido com o outro, e de no fundo continuar pensando, toma e embrulha, não sabes, mas toma. Hás-de ver, hás-de lixar-te tanto, e nessa raiva tão grande, nesse ciúme, sentia por ele uma enorme pena e desprezo, e por isso sentia-me obrigada a lembrar a sua figura franzina, o sorriso endiabrado e doce que nunca mais me voltaria a incomodar.

No dia do grande incêndio do Chiado, eu o meu neo-zelandês estávamos a experimentar a tenda em Aveiro. Tínhamos acabado de dar uma ao ar livre, nas dunas de São Jacinto, exatamente como havia feito com o meu amor, se calhar no mesmo lugar. Estava a ver na televisão que havia muito fumo na atmosfera, chegara à outra banda, aos pulmões do meu amor. Bem feita. Havia de pagá-las, de uma maneira ou de outra.

Não foi um mau Agosto, mas chegou ao fim, o Donald não encontrou a namorada, regressou a Londres e eu a casa. Pouco tempo depois voltaria a encarar o meu amor, namorando à larga e nas minhas barbas, porque eu tinha de pagá-las, estava a pagá-las bem e era só o começo. Eu havia de ver. Havia de lixar-me tanto, de vir comer-lhe os grãos de milho à mãozinha. Eu que me evaporasse, que fosse limpar móveis com óleo de cedro para casa da tia mais velha, porque havia de voltar para ele, claro que sim, porque sabia lá viver sem ele, sem o seu cheiro a máquinas, a subúrbio, ah, puta refinada, se não as pagas e eu não vejo, não seja eu filho do lugar onde nasci. Toma e embrulha.

Uma coisa é certa: Donald era de Christchurch, e a semana passada deu-se por lá um sismo.

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