Peso morto

Não se mexia do lado esquerdo. Tinha sofrido um acidente vascular cerebral e uma parte da massa cinzenta liquefizera-se. Tinha um buraco no cérebro e vivia na cama, exceto aos fins-de-semana, quando eu regressava da província e o metia no carro para o levar a almoçar, a passear, a viver.

Forçava-me a vir. Tinha ido para fugir à sua degradação, e mais nada, mas forçava-me a viajar todas as sextas à noite, porque a minha consciência perguntava-me, que filha és tu? E voltava ao abraço a essa metade de corpo que não me pertencia.

Sentava-me ao seu lado, contava-lhe a semana, aquele departamento não sei quê, a DREA tinha enviado um ofício sobre, certos colegas defendiam que, alquém me criticara por haver emitido uma uma circular na qual, conseguira sobreviver a nove reuniões sobre merda executiva e administrativa, já não suportava enfrentar a página de rosto de um Diário da Republica.
Ele sorria e dizia-me sempre o mesmo, caga nisso. Para mim era o cântico dos cânticos. Caga nisso queria dizer “não interessa. Isso não é a vida. Estás agora aqui, estamos juntos. Gosto tanto de te ver. Onde vamos passear amanhã? Estás tão bonita. Gosto tanto de ti.”
Caga nisso era toda a poesia do mundo.

Sentávamo-nos na borda da sua cama, do seu lado, sobre os lençóis brancos. Ele estava de camisola interior de manga cava e calções largos de algodão, que a minha mãe lhe costurava, muito descalço, com os pés perfeitinhos sobre o tapete e a metade esquerda do seu corpo pendurada, imóvel, morta. Era um gordo. Tinha sido um gordo toda a vida. Tinha enfardado até queimar o cérebro.

Puxa as calças para cima. Estás gordo que nem um leitão. Dás cabo de ti, Não deixes de comer que qualquer dia ficas preso a uma cama! Eu e ele tínhamos ouvido a conversa da minha mãe a vida inteira. Sabíamos que era verdade. E agora, ali estávamos. Ele, preso a uma cama, e eu, a ele e à sua prisão.
O vaticínio cumprira-se, como se ela tivesse poderes. Olhava-o. Ele olhava-me, sorríamos com os olhos mergulhados no outro, sem palavras. És a minha imagem. Não sou. Sou a tua imagem mas não quero. És a minha imagem. Estou a ver-me ao espelho. Não sou o teu espelho, fugi de ti, só aqui estou porque a minha consciência… Te obriga! Me obriga. Não interessa. Estás cá e eu gosto tanto de te ver. E eu a ti. Ondes vamos almoçar amanhã? Onde quiseres. Queres comer enguias? Enguias, que horror! Não gosto nada disso. Comes outra coisa. Está bem, enguias, seja.

Ao sábado de manhã tirávamo-lo de casa a poder de músculo. No rés-do-chão viva um vizinho mulato e solícito que fazia musculação e traficava droga. O meu pai dizia, vê lá se o preto está acordado, que ele ajuda. Batíamos-lhe à porta, desculpe, senhor Pereira, dê-me aqui uma ajuda com a cadeira de rodas, se faz favor. Desculpe estes trabalhos. Não tem importância nenhuma, é só pedir. Não sei se era da droga, mas o homem era a minha salvação.
Eram quatro degraus, e o mulato pegava na cadeira como se fosse o cesto das compras, e punha-a à porta num ápice, com o meu pai sentado nela. Eu agradecia. A minha mãe agradecia.
O preto é simpático, dizia ele. Era. Arranjou aquela branca - é uma rapariga bonita. É pena. Mas pode ser que ele a trate bem. Pode ser, anuía eu.

Abria a porta do Opel, encostava a cadeira ao assento, e com os dois braços enlaçava-o pelo peito, levantando-o em peso, cerrando as minhas mãos uma na outra nas suas costas, como duas serpentes que se engolissem num mesmo tempo; com uma perna empurrava-lhe a cadeira para trás, que a minha mãe, nos dias em que o esquema funcionava, haveria de segurar; rodava-lhe corpo na direcção do assento, deixando-o deslizar devagar . Metia-lhe as pernas para dentro. Endireitava-lhe os joelhos, os pés e as costas no assento. Perguntava-lhe, estás bem? Ria-se, feliz. Estava.

Dobrava a cadeira de rodas, levantava-a, pesava bem, e encaixava-a no porta-bagagens. Tinha-lhe ganho o jeito. Fazia tudo com perícia. A força repentina lesionava-me tendões nos pulsos; trazia as pernas e os braços carregados de hematomas, mas não dava por nada. No momento em que me concentrava para mover mais de cem quilos de carne humana, concentrava-me nisso. Os movimentos deviam ser precisos, coordenados; era necessário usar toda a minha força e distribuí-la pelo peso do seu corpo morto, adaptar a mobilidade do meu corpo à do seu. As nossas figuras tinham de mover-se em uníssono, como dois pares em dança, quando se dava a trasfega. E só eu sabia fazê-lo.
Pensava, outra filha não teria força para isto. Deus não se engana, há uma ordem que nos governa. Preciso do meu peso para suportar o seu. Eu e ele éramos um bloco monolípido. Um icebergue de carne. E ele dizia-me, enquanto o sol lhe batia nos olhos, és uma gorda bonita. És bem feita. És gorda e forte. És gorda e sorris-me como a tua bisavó. És gorda, porque és a minha filha. És gorda, pronto, e depois, não és feliz?

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