Não tenho cura

Foto: Matt Blum


Nos anos 80, princípios de 90, era mais difícil entrar no Frágil do que no Pentágono. A porta era guardada pela Margarida Martins, hoje da Abraço, ex-Guida Gorda.

A Margarida Martins fascinava-me por parecer aceitar o seu corpo com naturalidade. Movia-se sem medo, sem vergonha de existir, e eu, infinitamente mais magra, contudo gorda, não queria crer que pudesse, como ela, transformar-me num objeto de desejo.

Recordo muito bem as fotos que lhe tiraram por volta dos anos 90, deitada num canapé, seminua, envolta num lençol de seda. Tinham cores frias, talvez verde, talvez azul. Tenho-as na cabeça. Lembro-me das mamas caídas da Guida Gorda, dos pneus na cintura, das pernas grossas, e de ter ficado muda ao contemplá-la.

Saíram num jornal bem da altura, eventualmente o JL ou o Independente.

Pouco tempo antes ou depois das fotos da Margarida Martins, eu e o Meu Amor tínhamos acabado.

Nesse Verão, um estudante de Belas Artes deu em quedar-se contemplando-me como se eu fosse a Mona Lisa, mas em melhor. Nunca senti qualquer atração pelo Belas Artes, mas era imperioso esquecer o Meu Amor, pelo que aceitei a corte e começámos, enfim, a namorar, com algum esforço da minha parte, tudo em nome do bem maior: o esquecimento. O que tinha eu a perder?

Contribuiu para esta decisão a grande vontade que o Belas Artes sentia em me pintar nuazinha, tal como a Margarida Martins, e essa intenção engrandeceu-me. Também queria estirar-me num canapé e deixar-me retratar. Queria ver-me como os outros me viam. Queria ser uma mulher como as outras, embora mo negasse.

Infelizmente, o Belas Artes sempre se sentiu mais vocacionado para o abstrato, para a performance, e o projeto e o namoro foram ficando para um plano tão secundário que a certa altura quase comecei a pagar para que lhe mentissem por mim, dizendo que não estava, já tinha saído, ainda não tinha chegado. Não conseguia beijá-lo, ou dar-lhe a mão, sequer. Sentia o contato físico como uma violação de que ele não era culpado, apenas eu.

Recordei este episódio por ter ido hoje dar de novo a este maravilhoso site.

Sempre quis ser retratada nua como estas mulheres reais. Não saberei explicar como é que alguém que se negou tanto como fêmea, que sentiu tanta vergonha de existir, e do seu corpo, quis desnudar-se, assumindo as cicatrizes inúmeras, as estrias, a celulite, a pele imperfeita, a gordura.

Há uns três anos, talvez, assisti, em Évora, a uma performance na qual os participantes de um workshop de Verão, em artes performativas, exibiam os seus trabalhos de final de curso, alguns de grande violência, absolutamente nus. Os seus corpos e o que deles faziam eram o resultado final do trabalho desse workshop. A certa altura, o mestre, mexicano ou argentino, convida o público a juntar-se aos actores, e se não fosse a minha prima afastada agarrar-me inapelavelmente pela manga da t-shirt, tinha-me descascado completamente e ido lavar o chão com uma esfregona imersa num balde de sangue, e a seguir ter-me-ia esfregado no chão ensanguentado e depois na própria esfregona, para acabar a bailar o tango com os restantes participantes.

Não tens vergonha?, perguntava-me a minha prima afastada, no hotel. Não te posso levar a lado nenhum. Não, respondia-lhe, enquanto dançava completamente nua pelo quarto, e ela abanava a cabeça, pensando, não tens cura, não tens cura. É importante estar nu? É. É importante envolver-me em cenas de grande intensidade e exposição? É. Admitamos, portanto, que não tenho cura.

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