O mundo, em silêncio

O meu quarto na Matola tinha as paredes pintadas de rosa-velho, e sobre a cabeceira da cama a minha mãe pendurara a gravura de um anjo da guarda louro, vestido de rosa-claro, que protegia uma menina igualmente loura, caminhando atrás de si com os braços ligeiramente abertos. A minha mãe assegurara-me que eu também tinha um anjo da guarda velando por mim, de dia e de noite, e ensinou-me a rezar-lhe.
Não posso dizer que a ideia de um anjo da guarda me tenha sossegado. Contemplei muito esse quadro, preocupada, porque as minhas ações nem sempre eram decentes para uma menina católica, e, logicamente, não pretendia ter um espião sempre a vigiar os meus passos, embora, na versão da minha mãe, não houvesse outra solução. Teria mesmo de andar sempre com o emplastro atrás de mim.

Embora solitária, cresci com a certeza de nunca estar sozinha: havia algo sem rosto, corpo ou lugar que me protegia e acompanhava. A minha solidão vivia-se bem. Tinha-a aprendido. Falava sozinha com as árvores, as ervas, as abelhas, a água da mina, o céu, os animais. Perguntava e respondia, ensaiando diálogos imaginários. Seria eu o meu anjo?

No início da vida adulta deixei de acreditar em Deus, logo, em anjos, e neguei a fé católica, dando um grande desgosto à minha mãe. Mas o tempo leva-nos de volta às origens, porque é a terra onde começámos, e precisamos de voltar, a todo o momento, para confirmações, comparações, enfim, é a matriz.

Sobretudo, após a morte do meu pai, dei comigo a conversar com ele. Era o vazio à minha frente e, contudo, íamos dialogando animadamente - foi quando voltei a lembrar-me do anjo da guarda. Seria o meu pai o meu anjo da guarda? A ideia continuava a não me agradar, porque as minhas ações mantinham-se indecentes para uma menina católica, e, ainda por cima, com o pai a ver! Nada agradável!

Desde que vivo neste bairro ganhei o hábito de me sentar nos cafés a ler os jornais. Sou a única mulher sentada a ler jornais, embora haja muitas mulheres nos cafés. Sou a única mulher que não tem um homem ou filhos, não sendo viúva ou divorciada. A única mulher que raramente está acompanhada, a não ser pelas cadelas. Pelo menos, sou a única que se atreve a revelar ao bairro uma solidão não legitimada por uma prévia situação de normalidade social, mesmo que temporária. Antigamente conheciam-me como a senhora gorda das cadelas, título que agora mudou para a senhora das cadelas que emagreceu bastante. Senhora, sou eu a inventar. É provável que seja só a gaja, a mulher, ou, simplesmente, a gorda, o que não me incomoda.

Estar sentada no café, lendo, escutando e observando os outros é uma forma de interagir com o mundo em silêncio. Ninguém dá por nós. Somos um entre muitos, contudo estamos ali, individualmente, e partilhamos a existência uns dos outros.
Gosto de olhar e escutar. Observo muito, e fito os outros sem complexo ou intenção. Olho, apenas. E o que me acontece, ao olhar, é que vejo.
Há anjos, sim. Há anjos da guarda e anjos da discórdia. Vão e vêm. Cruzam-se, misturam-se; acontece sentarem-se às mesmas mesas e não se reconhecerem. A maior parte dos anjos desconhece a sua natureza.

Refiro-me aos anjos da guarda: na minha rua há um velho perneta que é um anjo. Costuma dar pão aos pombos. Há uma senhora igual a todas as outras senhoras que é um anjo que apenas atravessa a rua, passando. Há um jovem com um problema mental que pára sempre para falar com as cadelas. Os anjos estão disseminados por todos os sexos, classes, culturas e eu conheço-os porque confio no seu olhar ou sorriso. Sigo-os, para confirmar a primeira impressão. E reencontro o olhar sem peso ou o sorriso esboçado apenas como um " sim, estou aqui" que inicialmente despertou os meus sentidos.
Não é impossível que o meu anjo da guarda esteja dentro de mim, mas a minha mãe tinha razão: eles existem, e amparam-nos de leve com a sua presença quase transparente.

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