Ofereceram-nos um ao outro
Ora aqui está o senhor meu pai sentado no sofá em frente, com a balalaica apertada no botão da curva da barriga, as pernas abertas à homem, as mãos enganchadas com os três dedos em falta na mão esquerda muito vísiveis.
Como é que fizeste isso?, perguntava-lhe.
Quando era pequeno trabalhei numa tipografia… foi uma máquina de corte. – E eu fazia uma careta. Uma lâmina cortando os dedos do meu pai. Devia ter doído tanto. - Houve sangue, muito sangue, a fábrica parou. Foi um drama, não foi?
Ah, já não me lembro – explicava – mas não senti nada. Estava a trabalhar. Só quando vi o sangue é que percebi. Pensei que tinha feito mais um cortezito.
Então e depois, levaram-te para o hospital?
Não me lembro. Embrulharam-me os cotos num pano e alguém me coseu os dedos. Deve ter sido um médico qualquer lá na terra.
O meu pai não tinha os três últimos dedos da mão esquerda e não sabe que destino lhes deram. Atiraram-nos ao lixo? À pia? Deram-nos a comer a um cão? Nunca se importou. Sempre se sentiu inteiro. E era. Perfeito. Uma obra do Senhor. Eu e ele fomos uma oferta que o céu resolveu de uma só penada. Ofereceram-nos um ao outro.
E ei-lo contemplando-me enquanto escrevo. Levanto os olhos do teclado e sorrio-lhe. Hoje ainda não me disse nada. Sorri para a menina querida cujos anos se vão seguindo. Saí-lhe tão ao contrário do que desejou. Ou talvez não. Só não fui engenheira agrónoma nem de direita nem disse mal dos pretos, de resto portei-me bem. Sou dona de mim. Tenho procurado ser justa e digna e evitado a loucura. E para ser sincera, a última tem custado.
Ele olha-me sério, agora.
Não sabias? Evitar a loucura? Saltar esses dias, trabalhando, comendo, dormindo, como se a vida fosse uma antiga máquina de tipografia que corta dedos e manejo com cuidado, protegendo os que me deste? Não sabias que me alimentei só da memória do teu sorriso e do calor do teu corpo? Não sabias!
Fito este homem sentado à minha frente. Que portento! Tens uma ideia do que seja ser frágil, forte, doce e amargo?
Tenho. Toda a gente tem.
Fugiste da loucura?
Não, Isabela, no meu tempo não havia loucura, havia álcool, e eu tinha de cuidar da tua avó, não podia dar-me a esses luxos. Vou lembrar-te algo que te protegerá da loucura, ouve-me.
Ouço.
Lembras-te, quando eras pequena e eu te ia buscar à escola mais cedo ou aos fins-de-semana, e íamos passear os dois?
Sim. Perfeitamente.
Do que te lembras?
Saías do caminho principal e dizias, vamos experimentar esta picada. Vamos ver onde é que isto vai dar. E íamos por ali fora com a Bedford, deixando à nossa volta uma nuvem de pó vermelho da terra. Às vezes era areia solta.
Às vezes. E lama, se chovia.
Havia mamanas carregando à cabeça feixes de lenha, latas de água, sacas de carvão. Formavam filas indianas, e pelo meio as crianças. Os homens caminhavam lentos, as mulheres, depressa. As crianças, ziguezagueando na brincadeira. Falavam aquela língua deles.
Sim, eu às vezes parava e perguntava-lhes…
… o caminho.
E onde era a cantina mais próxima.
Era para pararmos e bebermos uma Coca-Cola.
Sim, e parecia que conhecias sempre os cantineiros. Davas-te com todos como se os conhecesses de sempre.
Eram brancos.
Havia sacos grandes de serrapilheira com peixe seco. Peixe miúdo. Feijão. Milho. Muitos cereais. Eu provava-os, enquanto tu falavas com o cantineiro. Circulava entre os sacos abertos, da minha altura.
Eras curiosa, mexida, não paravas quieta.
A língua deles…
… era língua de preto, já sabes que eles não falavam como nós.
Não, a língua deles era misteriosa. Não falávamos a mesma língua e por isso eu sempre soube que aquela não era a nossa terra.
Era nossa, era, se eles tivessem compreendido…
Pai, não vamos entrar outra vez nesta discussão. Já chega. Nunca nos iremos entender neste ponto, pois não?
Dificilmente.
E o que me espanta é teres morrido há 10 anos e ainda não seres capaz de compreender.
Compreender, já compreendi. Que remédio! Difícil é aceitar. Mas se te alegra saber, os meus melhores amigos aqui são todos pretalhada. Já montei uma empresa, enfim, isto é difícil montar aqui empresas, que há regras para tudo, mas arranjei uma comissão de boas vindas para pretos, tudo a dançar e a cantar, comer, beber e rebolar o traseiro, como eles gostam, e outra, uma coisa mais a sério, só com música clássica, para os brancos. Quando saem da boca do túnel e entram na Grande Luz é o que os espera - música para todos.
Rio-me – só tu. O que é que cá vieste fazer hoje? Andas chateado? Tens saudade minhas?
Chateado, eu? Nem por sombras. Imaginei que gostasses de me ver. Tu é que tens pensado em mim. Rapariga, vim cá para te lembrar das estradas que percorríamos juntos. Dessa gente que as emoldurava, das palhotas construídas perto dos cajueiros, das mangueiras ajoujadas de fruta madura. As mafurreiras e as papaieiras, a cor de brasa do final da tarde, como se o céu ardesse contra o azul intenso, o cheiro das queimadas, da farinha a cozer nas panelas de alumínio, do cansaço dos corpos…
Tu não falas assim, pai, por amor de Deus.
Ri-se todo para mim. - Falo, falo. Agora, desde que escreves a sério comecei a falar assim.
És tão parvo.
Vai chatear o teu pai.
Rimo-nos outra vez.
Vá, diz-me, o que vieste cá fazer?
Isso, rapariga, isso. Lembras-te dessas tardes? Lembras-te bem dessas tardes?
Lembro-me delas como se ainda lá estivesse.
E tens saudades?
Meu Deus…
Então, ouve-me, escuta bem isto: nestes dias em que pensas na loucura, na doença, na solidão lembra os nossos passeios pelas picadas. A cinza, o fogo que havia pelo ar, as galinhas cafreais, os cabritos, os cães escanzelados dos pretos que os seguiam fielmente, as plantações de amendoim, a cana-do-açúcar que te comprava à beira da estrada, os cabos, os fusíveis, as tomadas a chocalhar lá atrás na caixa da Bedford a cada buraco. Lembra esses dias que viveste, que estão guardados em ti e que continuarão vivos após a morte do mundo, porque existiram, Isabela, e o que existiu um dia, como um bloco de granito vindo do princípio do tempo, não perece. Se nunca te esqueceres desses dias...
Pai, tu não falas assim.
Está dito.
Como é que fizeste isso?, perguntava-lhe.
Quando era pequeno trabalhei numa tipografia… foi uma máquina de corte. – E eu fazia uma careta. Uma lâmina cortando os dedos do meu pai. Devia ter doído tanto. - Houve sangue, muito sangue, a fábrica parou. Foi um drama, não foi?
Ah, já não me lembro – explicava – mas não senti nada. Estava a trabalhar. Só quando vi o sangue é que percebi. Pensei que tinha feito mais um cortezito.
Então e depois, levaram-te para o hospital?
Não me lembro. Embrulharam-me os cotos num pano e alguém me coseu os dedos. Deve ter sido um médico qualquer lá na terra.
O meu pai não tinha os três últimos dedos da mão esquerda e não sabe que destino lhes deram. Atiraram-nos ao lixo? À pia? Deram-nos a comer a um cão? Nunca se importou. Sempre se sentiu inteiro. E era. Perfeito. Uma obra do Senhor. Eu e ele fomos uma oferta que o céu resolveu de uma só penada. Ofereceram-nos um ao outro.
E ei-lo contemplando-me enquanto escrevo. Levanto os olhos do teclado e sorrio-lhe. Hoje ainda não me disse nada. Sorri para a menina querida cujos anos se vão seguindo. Saí-lhe tão ao contrário do que desejou. Ou talvez não. Só não fui engenheira agrónoma nem de direita nem disse mal dos pretos, de resto portei-me bem. Sou dona de mim. Tenho procurado ser justa e digna e evitado a loucura. E para ser sincera, a última tem custado.
Ele olha-me sério, agora.
Não sabias? Evitar a loucura? Saltar esses dias, trabalhando, comendo, dormindo, como se a vida fosse uma antiga máquina de tipografia que corta dedos e manejo com cuidado, protegendo os que me deste? Não sabias que me alimentei só da memória do teu sorriso e do calor do teu corpo? Não sabias!
Fito este homem sentado à minha frente. Que portento! Tens uma ideia do que seja ser frágil, forte, doce e amargo?
Tenho. Toda a gente tem.
Fugiste da loucura?
Não, Isabela, no meu tempo não havia loucura, havia álcool, e eu tinha de cuidar da tua avó, não podia dar-me a esses luxos. Vou lembrar-te algo que te protegerá da loucura, ouve-me.
Ouço.
Lembras-te, quando eras pequena e eu te ia buscar à escola mais cedo ou aos fins-de-semana, e íamos passear os dois?
Sim. Perfeitamente.
Do que te lembras?
Saías do caminho principal e dizias, vamos experimentar esta picada. Vamos ver onde é que isto vai dar. E íamos por ali fora com a Bedford, deixando à nossa volta uma nuvem de pó vermelho da terra. Às vezes era areia solta.
Às vezes. E lama, se chovia.
Havia mamanas carregando à cabeça feixes de lenha, latas de água, sacas de carvão. Formavam filas indianas, e pelo meio as crianças. Os homens caminhavam lentos, as mulheres, depressa. As crianças, ziguezagueando na brincadeira. Falavam aquela língua deles.
Sim, eu às vezes parava e perguntava-lhes…
… o caminho.
E onde era a cantina mais próxima.
Era para pararmos e bebermos uma Coca-Cola.
Sim, e parecia que conhecias sempre os cantineiros. Davas-te com todos como se os conhecesses de sempre.
Eram brancos.
Havia sacos grandes de serrapilheira com peixe seco. Peixe miúdo. Feijão. Milho. Muitos cereais. Eu provava-os, enquanto tu falavas com o cantineiro. Circulava entre os sacos abertos, da minha altura.
Eras curiosa, mexida, não paravas quieta.
A língua deles…
… era língua de preto, já sabes que eles não falavam como nós.
Não, a língua deles era misteriosa. Não falávamos a mesma língua e por isso eu sempre soube que aquela não era a nossa terra.
Era nossa, era, se eles tivessem compreendido…
Pai, não vamos entrar outra vez nesta discussão. Já chega. Nunca nos iremos entender neste ponto, pois não?
Dificilmente.
E o que me espanta é teres morrido há 10 anos e ainda não seres capaz de compreender.
Compreender, já compreendi. Que remédio! Difícil é aceitar. Mas se te alegra saber, os meus melhores amigos aqui são todos pretalhada. Já montei uma empresa, enfim, isto é difícil montar aqui empresas, que há regras para tudo, mas arranjei uma comissão de boas vindas para pretos, tudo a dançar e a cantar, comer, beber e rebolar o traseiro, como eles gostam, e outra, uma coisa mais a sério, só com música clássica, para os brancos. Quando saem da boca do túnel e entram na Grande Luz é o que os espera - música para todos.
Rio-me – só tu. O que é que cá vieste fazer hoje? Andas chateado? Tens saudade minhas?
Chateado, eu? Nem por sombras. Imaginei que gostasses de me ver. Tu é que tens pensado em mim. Rapariga, vim cá para te lembrar das estradas que percorríamos juntos. Dessa gente que as emoldurava, das palhotas construídas perto dos cajueiros, das mangueiras ajoujadas de fruta madura. As mafurreiras e as papaieiras, a cor de brasa do final da tarde, como se o céu ardesse contra o azul intenso, o cheiro das queimadas, da farinha a cozer nas panelas de alumínio, do cansaço dos corpos…
Tu não falas assim, pai, por amor de Deus.
Ri-se todo para mim. - Falo, falo. Agora, desde que escreves a sério comecei a falar assim.
És tão parvo.
Vai chatear o teu pai.
Rimo-nos outra vez.
Vá, diz-me, o que vieste cá fazer?
Isso, rapariga, isso. Lembras-te dessas tardes? Lembras-te bem dessas tardes?
Lembro-me delas como se ainda lá estivesse.
E tens saudades?
Meu Deus…
Então, ouve-me, escuta bem isto: nestes dias em que pensas na loucura, na doença, na solidão lembra os nossos passeios pelas picadas. A cinza, o fogo que havia pelo ar, as galinhas cafreais, os cabritos, os cães escanzelados dos pretos que os seguiam fielmente, as plantações de amendoim, a cana-do-açúcar que te comprava à beira da estrada, os cabos, os fusíveis, as tomadas a chocalhar lá atrás na caixa da Bedford a cada buraco. Lembra esses dias que viveste, que estão guardados em ti e que continuarão vivos após a morte do mundo, porque existiram, Isabela, e o que existiu um dia, como um bloco de granito vindo do princípio do tempo, não perece. Se nunca te esqueceres desses dias...
Pai, tu não falas assim.
Está dito.