Primeira lição

Peço que realizem comigo um breve exercício que não precisa de se prolongar por mais de 20 segundos. Por um momento interrompam a leitura e observem a vossa mão direita ou esquerda: as veias e pequenos vasos, tendões, rugas, textura e tom de pele, nós e formato dos dedos, desenho das unhas, eventuais sinais e cicatrizes. Podem ainda seguir as linhas e nervuras existentes na palma de cada mão. É uma mão quente, fria, seca, húmida? Gostam dela? É bonita, tem elegância, personalidade, manteve-se infantil? Observem, por favor, eu posso esperar um pouco.



*



Olhei também para a minha mão direita, porque as minhas palavras me comprometem. Sempre tive as mãos muito enrugadas, mas agora estão mais. Há uma certa flacidez na pele. De resto, é a uma mão razoável, de alguém que teve até agora uma vida facilitada quanto ao trabalho manual. Não tenho calos, a pele é macia e bem tratada. É a mão de uma pessoa que foi poupada à escravidão física.

O que quero dizer é muito simples, muito rápido, muito lógico: dentro de algum tempo, não sei quanto, pode ser na semana ou no ano que vem, dentro de 10 ou 30 anos, a minha mão perderá a cor, porque o sangue deixará de circular nas minhas veias. A minha mão tornar-se-á fria, depois azul, e a matéria que agora a faz entrará em decomposição até restarem ossos limpos, brancos, como os dos meu pai. Mais tarde ou mais cedo morrerei, e esta é a única certeza que tenho sobre o meu futuro.

Embora não possa saber quando nem como será, desejo-me, bem como a quem me lê, uma boa morte, sem sofrimento, sem palavras por dizer.

Este deveria ter sido o tema da nossa primeira lição na escola, antes das vogais, dos algarismos, das somas. Alguém deveria ter-nos dito, “contemplem as vossas mãos, porque vós haveis começado a morrer…”

Após termos compreendido esta mensagem primordial, poderia vir o resto.

Precisamos de compreender que, estando aqui, não somos daqui. Talvez a compreensão e aceitação da morte nos tornasse menos ansiosos e incompletos. Acredito que deixaríamos de nos preocupar com assuntos minúsculos, que nos escutaríamos com outra atenção, que viveríamos cada momento mais devagar.

Mas admito que aceitar a nossa morte não constitua o exercício mais difícil. Difícil é aceitar a perda dos que amamos. Perder o outro implica perder uma parte de nós. Quando o meu pai morreu, uma parte de mim ficou com ele, foi-se embora, e eu chorei essa dupla perda. Mas a verdade é que, pensando à distância, uma parte dele, uma enorme parte, ficou comigo; nunca partiu. Sinto o meu pai vivo a todos os instantes, não porque também tenha herdado a sua carne, mas porque ele me deixou com tudo o que vivemos juntos. Essa memória do nosso amor abraça-me fortemente todos os dias. Paira sobre a mim, em permanência, a substância transparente do amor que nos uniu. Mesmo a dos dias em que nos zangámos a sério, em que nos insultámos. Consigo hoje sorrir ao pensar nesses momentos, e dizer com os meus botões, que se confundem com os dele, meu querido, é a vida, e não há bela sem senão.

O meu pai deixou-me como herança o seu amor, e acredito que é a única riqueza que podemos deixar uns aos outros.

Não estivemos juntos mais de 30 anos, mas aproveitámo-los bem: rimo-nos juntos à varanda, observando o vizinho da frente engraxar os pneus do carro e limpar-lhe o pó com um espanador, vimos filmes do Trinitá, o cobói insolente, chorámos juntos com xaropadas sentimentalóides, passeámos no comboio que fazia a ligação entre a Costa da Caparica e a Fonte da Telha, comemos bifanas na Baixa, bebemos imperiais fresquinhas, roendo tremoços, salvámos cães e gatos da rua, que trouxemos para casa às escondidas da minha mãe, andámos à batatada porque lhe chamei porco fascista ou qualquer coisa do género, e não nos falámos durante dois meses, quando fiz as malas para sair de casa - até o levei a ver filmes sobre nazis apanhados, na esperança de que se identificasse com as personagens, e o filho-da-mãe tinha o descaramento de me sair das salas de cinema como se aquilo não tivesse nada a ver consigo. Tramava-me sempre.

Tivemos uma vida intensa, conflituosa, cheia de alegrias, culpas e perdões, e pensando bem, afinal levámo-la boa. Poderia algum de nós, honestamente, pedir mais?

Mensagens populares