Uma mulher muito pública

Quase todos os dias o carteiro me traz um envelope volumoso cujo conteúdo conheço antes de abrir. Mais um datiloscrito de um jovem autor ou autora, amigo de alguém que me conhece vagamente e obteve o meu endereço mediante consulta a outrém, com acesso à minha morada por portas e travessas.
Desde que publiquei Eu e Mamã, seguido de Morena Mija no Tapete, mas, sobretudo, após o sucesso de Cunilinguus, a Vizinha de Cima, tem sido a loucura. Tornou-se incontrolável. A Imprensa escrita, audiovisual, nacional, estrangeira, generalista ou especializada não me larga. Conferências em universidades. Aulas abertas. Conversas em acontecimentos de índole cultural. Continuo a explicar, em todas as entrevistas, que não passo de uma funcionária pública que escreve, não pretendendo outro estatuto - apenas o de mulher extremamente pública, mas a mensagem não passa. A Isabela e as suas personas, essa desfragmentação, não será um indício, uma espécie de esquizofrenia? O José Rodrigues dos Santos já mo perguntou duas vezes, e sempre em direto. Ultimamente, os jornalistas tiraram especializações em psiquiatria. Esquizofrenia?! A persona é um eu totalmente sob controlo, um eu consciente, trabalhado, explico muito calmamente. E rio-me.

Hoje chegou-me um datiloscrito interessante. Não gosto de tratar mal ninguém, mas custa-me responder-lhes, meu amigo, está quase lá; minha querida, demasiado palavroso; caro senhor, o seu texto não flui; excelentíssima senhora, o seu texto vale como documento, mas falta-lhe... literariedade. É difícil permanecer gentil após tanta leitura inválida. Satura. Dêem-me uma verdade, ou mesmo uma mentira que se lhe assemelhe, que transpire nas minhas mãos e arrebate esta alma tão exigente quanto frágil.
Hoje a caixa do correio trouxe-me, finalmente, a obra. Passei os olhos pelo título e comecei a ler sem esperança: Corpos. Mais uma lírico-xaropada sem memória futura, pensei, mas, desta vez, lixei-me. O homem apanhou-me, segurou-me pela cintura, atirou-me contra a parede do corredor e fiquei presa no seu abraço de ferro menstruado. Escrevia, o cabrão. Um escritor! Imagine-se, um escritor a sério. Um num milhão, onde é que isso se encontra? Respondi-lhe sem demora para o email que indicava no datiloscrito, exigindo-me moderação. Isabela, juízo, juízo, calma, dizia-me. E escrevi. Caro Samuel B. Ramos, gostaria de poder falar-lhe sobre a obra que me fez chegar. Contacte-me para este mesmo email, por favor. Os melhores cumprimentos. Fiz enviar e pensei, já está, já seguiu. E foi esse o pensamento que me interpelou. Convinha compreender em segredo, só para mim, a importância que atribuíra à curta mensagem que lhe tinha escrito, à urgência com que respondera e ao pensamento pós-envio. Não era uma mensagem qualquer. Eu pensara, já está, já seguiu. O que era isto? O que se passava comigo?

Existia um subtexto nessa mensagem. Não tinha sido apenas um gostei, contacte-me. Não, havia ali outra coisa mais sôfrega, e isso era o que me havia interpelado. Olhando bem para dentro, compreendi que o que lhe tinha escrito se traduzia em poucas palavras de desarmante objetividade: temos de foder ou quero foder-te ou, eventualmente, vem comer-me sem lei.
Era só isto.
E pensei, dececionada comigo, mas excitada com a breve possibilidade de saciar o apetite que o jovem autor me havia despertado, primeiro, a foda; segundo, e muitos passos atrás, a literatura.

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