Veio cá falar sobre o tema do meu próximo livro

Você escreve sobre cada coisa…, exclamou o Simões, preocupado, e com uma ponta de censura. Sobre a morte da sua mãe, Isabela?! Ninguém escreve sobre esses assuntos. Pelo menos antes de acontecerem.
Não sabia que havia assuntos proibidos, senhor Simões. Respondi-lhe a verdade. Afinal, há assuntos proibidos? O senhor sempre me disse, menina, escreva sobre o que quiser, desde que venda. Não posso escrever sobre a morte da minha mãe porque o seu coração enfraquece cada dia mais e o assunto me apavora? Devo escrever sobre quê, nos momentos em que sonho que alguém me avisa da sua morte, e em que corro para a salvar? Escrevo sobre a geração à rasca, sobre a crise, sobre a corrupção?
Não, Isabela, escreva sobre uma chávena de chá. A que tem agora à sua frente.
Isso é poesia, senhor Simões, e eu não faço poesia, dou porrada.
Escreva sobre a natureza.
Pode ser, gosto de terra, de lama. Agrada-me mais.
Escreva sobre as suas cadelas.
Mas a minha mãe morre, senhor Simões, e todos os dias um pouco mais. As suas mãos estão cada vez mais ossudas e paradas. O rosto branco, muito macio e mais distante. Tinha a pulsação a 40 e tal no domingo passado. Não lhe disse a verdade. Aumentei. E a pressão arterial muito baixa. Menti. Tinha dores e nenhum comprimido lhas podia tirar. Perguntei-lhe se tinha tomado os do coração. Que sim. Tudo. Disse-lhe, está tudo bem, isso é mania tua. Vê se descansas e te animas. Quer que eu escreva sobre a Primavera? Sobre uma família de classe média que de repente se viu desempregada e sem dinheiro para o minimercado?! Não me apetece. Vejo a minha mãe morrer e isso atira-me à cara que sobro eu, que sou a última deste ramo. Não resta ninguém. Fui um terreno pavorosamente infértil. Uma terra dura e seca que nenhum colono aproveitou. Aqui não havia ouro, prata nem sequer ferro. Mande cá um cabouqueiro escavar até ao mais fundo que puder, amanhã, e verá, só terra seca. Nem um veio de água, nem sinais.
Isabela, a menina não aceita… Não perdoa e não avança. Tem tomado o antidepressivo?
Todos os dias! E rio-me. Oh, senhor Simões, sem antidepressivo é que havia de ser lindo. E rio-me ainda mais. Estou sempre a lembrar-me da desgraçada da Elis Regina: no anos 70 não havia antidepressivos, a mulher nasceu cedo demais.
Bem, bem, a menina não é a Elis Regina.
Não, claro, e ainda bem. Lembro-me dela porque nunca compreendi como podemos deixar-nos morrer quando temos filhos. Eu tenho as cadelas, senhor Simões, e a minha mãe, e elas prendem-me à terra, tornam a vida obrigatória. Os que precisam de nós têm a capacidade de nos atirar para a rua com 40 graus de febre, sem podermos.
Lá isso… anuiu.
Pois, senhor Simões, é por isso que a minha mãe não pode morrer. É por isso que escrevo sobre a sua morte. Não me interessa Fukuxima. Eu já estou cheia de veneno, portanto é mais miligrama, menos miligrama. Mas a morte da minha mãe, esse assunto insignificante que não interessa a ninguém, que não altera uma palha na ordem do mundo... é isso, senhor Simões.

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