As putas somos nós

Foto de Ruth Orkin, American girl in Italy, 1951.



Todos os dias, pelo mundo inteiro, criadas do hotel são assediadas sexualmente ou vítimas de violação por clientes, patrões e colegas. Como sei? Porque não sendo criada de hotel fui a vida inteira alvo do mesmo por parte de desconhecidos, vizinhos, colegas e familiares. Porque tendo começado a relatar experiências desta índole a outras mulheres, já adulta, descobri que todas tínhamos vivido o mesmo.
As experiências de assédio e abuso sexual mais antigas que recordo datam dos meus 7 ou 8 anos, todas perpetradas por pessoas muito próximas à minha família, em quem os meus pais confiavam totalmente, e algumas das quais fui já relatando por aqui. Se em Moçambique, protegida, as tentativas de abuso sexual eram de difícil fuga, imaginemos o que terá sido, neste contexto, a vida de uma adolescente que cresceu depressa, sozinha em Portugal, saltando de casa em casa durante uma dezena de anos.
Uma boa parte das minhas memórias de adolescência relacionam-se com estratégias de fuga a homens concretos que pretendiam apanhar-me sozinha, e a formas de lidar com as famílias na sua presença.

Imaginemos este cenário e ação: uma família tradicional, abastada, com crianças pequenas, que me recebe por uma temporada. São pessoas a quem sou confiada, amigos da família, cujo “chefe” me corteja às escondidas pelos corredores da casa enorme, tentando agarrar-me, roubar-me beijos, carícias, aos quais me furto, lutando para me libertar, fugindo a correr para a cozinha, onde se encontram as crianças, a esposa, as criadas. Tenho de me manter em silêncio. Sei que não posso contar a ninguém. Sei porque sei. Contar como e para quê? Gero um conflito conjugal? Acreditam numa miúda? É preciso continuar a viver nessa casa uma quantidade de meses, é preciso evitar esse homem, é preciso manter uma aparência de normalidade, não mostrar animosidade, mas, pelo contrário, gentileza, agradecimento. Como evitar ir com ele de carro às compras? Que desculpa arranjar? A questão é: como evitar, durante meses, estar sozinha com um homem em cuja casa vivemos e que sabemos que nos molestará, se puder?
A minha adolescência foi isto: fugir de homens.
Um dia, já adulta, encontrei-o no Metro de Lisboa e não pude escapar-lhe. Estava velho. Pediu-me desculpa e agradeceu-me por nunca ter contado nada à esposa. Disse-me que eu tinha sido uma “grande mulher” porque evitei destruir o seu casamento. Não lhe respondi. Saí na estação de Metro que me cabia. Entretanto, soube, o homem morreu. Devo dizer que não era má pessoa. Era um homem culto, inteligente e bem-parecido, para quem foi normal assediar uma adolescente à sua guarda. Imagino que fizesse comigo o mesmo que faria às suas empregadas.

A adolescente que eu fui comportou-se como uma “grande mulher”? Não. Eu julgava não ter saída. No contexto, na época, não a tinha, realmente. Por outro lado, acreditei, durante muito tempo, que o assédio era culpa minha. Era o meu corpo que chamava os homens. A culpa estava em mim. Na forma como me vestia, como me movimentava. Eu era uma mulherzinha que gostava de ser bonita, de parecer bonita e pagava a fatura da minha vaidade. Durante muitos anos acreditei que embora o assédio fosse reprovável, eu também tinha culpas por ser uma mulher desejável. A primeira vez que me queixei de assédio à minha mãe, e lhe contei que na rua um homem me tinha dito x, respondeu-me o que lhe haviam ensinado, “mulher séria tem orelhas moucas”. E eu era uma rapariga séria, embora os meus ouvidos continuassem a escutar tudo, muito mais do que eu desejaria.

Tão violentas como as experiências de assédio físico foram as que configuraram ataques verbais, quando atravessava um lugar onde os homens se juntavam e comentavam entre si o meu corpo e a minha vergonha, grosseiramente, mencionando o tamanho das minhas mamas e rabo e que uso pretendiam dar-lhes. Mas também os ordinários solitários que simplesmente se aproximavam de mim e soltavam um “fazia-te isto”, “comia-te aquilo”, afastando-se rápida e cobardemente. Ou nos transportes públicos, os homens que se esfregavam em mim com asquerosos pénis duros, dos quais eu fugia sem pensar, sempre sem pensar, porque era fugir, ponto final. Só muito tarde ganhei coragem para os confrontar em voz alta com esse abuso, e percebi que reagiam insultando-me, chamando-me puta, e saindo na paragem seguinte, sem que qualquer dos passageiros do autocarro se sentisse motivado a ajudar-me. Eu estava sozinha naquilo. Queixava-me, era insultada e a assistência permanecia serena como se estivesse a acontecer o que era normal que acontecesse.
Por tudo isto me parece lindo que o diretor do FMI se encontre a ser julgado pelo crime de abuso sexual de que é acusado. Errou o alvo. Julgou que a negra se calaria, porque era pobre, porque não tinha poder. Lixou-se bem.

Mas o que convém ficar bem claro é que o diretor do FMI é apenas um entre triliões de predadores sexuais que todos os dias procuram as suas presas e as violam objectiva ou subjetivamente. Eu teria vivido uma vida muito mais saudável sob todos os pontos de vista, teria sido uma pessoa diferente se não tivesse aprendido que se deve fugir dos homens, se não tivesse passado grande parte da minha vida a olhá-los como ameaça. Aquilo em que me transformei também resulta dessas experiências traumáticas que as mulheres, durante muito tempo, tiveram vergonha de admitir, de contar umas às outras, porque afinal, tudo à nossa volta nos dizia é que as putas éramos nós, que o mal estava em nós.

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