Do poder

[...]

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

[...]

Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira
um cobre ignóbil oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.



Transcrevo duas estrofes de Num Bairro Moderno, de Cesário Verde, pretendendo focar-me no gesto desdenhoso do criado.
De onde eram originários os criados, no século XIX? Do mesmo lugar de onde provinha a vendedora de hortaliças e legumes: da aldeia, da província, eventualmente da cidade, mas de um estrato social muito baixo. O criado que atira o "cobre lívido, oxidado" é seu "irmão social", contudo apresenta-se no patamar acima, ignóbil, oxidado - caraterísticas que podemos transferir da moeda para o homem envilecido.

Há uns dias, um amigo falava-me da realidade moçambicana nos dias de hoje, a meu pedido, e dizia-me algo que cito de memória, "os negros com dinheiro, todos de 4x4, são os que pior tratam os seus irmãos de raça. Não há hoje por lá nenhum branco capaz de tratar um negro com tanta indiferença e arrogância como outro negro. Não há um obrigada, um faz favor. Nada. É chocante."

Quem leu Primo Levi ou outros escritores do holocausto percebeu que os capos, chefes recrutados pelos SS para fazerem o trabalho sujo, criando leis dentro da lei, distribuindo trabalho, selecionando os grupos para as câmaras de gás e deixando-se corromper muito para além do que pode conceber a mente humana eram escolhidos entre os prisioneiros do campo de concentração. Os SS pouco saíam das suas casas, dos seus gabinetes. Concebiam uma estratégia que nem sequer precisavam de executar: os capos tratavam de tudo com grande eficiência, sem escrúpulos.

Somos lobos uns dos outros, não é o que se diz? Não é uma afirmação verdadeira, na sua essência: a natureza humana envergonha a animal, porque os animais comem-se por instinto, sem consciência do bem ou do mal, mas nós comemo-nos conscientes, procurando manter o mais artificial e transitório dos estados: o poder, mesmo o insignificante. Veja-se o criado em Num Bairro Moderno. Que poder tem aquele homem no interior da casa dos senhores?

Tudo isto a propósito da convicção socialmente correta do mainstream, todo escolarizado, de que os bonzinhos são bons e os mauzinhos são muito maus. Como se em cada um de nós não houvesse um anjo e um diabo e o que entre eles circula - a apetência para tudo, dependendo das circunstâncias, das oportunidades.

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