História muito simples II

Não acredito no esquecimento. As experiências dos sentidos, as palavras, emoções que vivemos devem encontrar-se registadas em filamentos ligados a outros filamentos, algures entre sinapses.
O cérebro contém um arquivo de rápido e imprevisível acesso, que procura, a cada instante, modelos, e desencadeia sistemas de alerta ao realizar o seu reconhecimento. Potencialmente, recordamos tudo, porque tudo está guardado, embora desconheçamos o processo e a linguagem de arquivo.

Há quase 40 anos que não me lembrava da Maria de Fátima. Desde o exame da 4ª classe que nunca mais nos encontrámos, nem haveria motivo, já que nunca fomos grandes amigas. Desapareceu da minha vida e da minha consciência. Foi apenas uma colega da escola. De certeza que percebia mais aritmética do que eu. Qualquer pessoa percebia mais aritmética do que eu. Pior, só os pretos, e mesmo esses. Pelo menos era o que me dizia a Dona Adelaide, uma regente muito séria.

Os olhos grandes. O cabelo escuro e liso, pelos ombros. Nariz e boca finos. O perfil, a maneira como rodou a cabeça, a posição do corpo. Eis a Maria de Fátima na descida do Pragal, inteirinha, 40 anos depois, mas ainda com 10 anos. Olhei-a, e o nome veio-me à cabeça sem que o chamasse: Maria de Fátima.

São as marias de fátima que não me deixam acreditar no esquecimento - suspeito, desagradavelmente, que um momento vivido sobreviva ao resto do nosso tempo.

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