O Meu Amor não nos quis

Deu-me um beijo e partiu. Fiquei a vê-lo voltar ao carro, estacionado metros à frente, percorrendo o caminho mais largo do jardim. Ia ao longe e gritei-lhe, volta, tenho saudades do nosso futuro. Escuta, há um tempo que será nosso! Eu sei. Eu tenho a certeza. Espera um pouco. Basta esperar.

Havia música nos altifalantes do jardim, para entreter os velhotes, e ele não ouviu, ou, se ouviu, não se voltou, ou eu não lhe gritei outras palavras que as do silêncio do meu desejo.

O Meu Amor não projetou o nosso futuro, não acreditou num tempo para os nossos beijos, sobretudo, não nos quis. O Meu Amor não nos quis.

Permaneci com o pescoço esticado em frente, fitando-o, enquanto a sua figura ia ficando cada vez mais pequena, e pensando já numa saída, o que fazer, sim, ainda sou nova, tenho uma vida inteira. Posso encontrar outro amor, não digo o Amor, não, não vale a pena apontar alto, isso acabou, viveu-se, digo, uma outra vida, filhos, isso, talvez filhos.

E nesse dia voltei para casa magicando quais os passos a seguir para engravidar no mês seguinte. Foi quando se iniciou o meu período fértil tal como outros tem a fase azul, a fase rosa.

O "período fértil" durou seis anos. Estive sempre grávida, exceto nos dias passados na maca, no corredor da maternidade, à espera da raspagem relativa ao último aborto espontâneo, cuja concretização ia passando de turno para turno.

Uma raspagem não custa nada. Abrem-se as pernas e cerram-se bem os maxilares e os punhos. Dez minutos, quinze, vinte. O que custa é ouvir o metal da faca a tinir na bacia e evitar olhar para o que lá ficou.

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