As ervas daninhas do corpo

Lembrei-me da Isabel enquanto tirava as folhas secas das plantas.
Em Alcácer, tive um belo jardim de rosas perfumadas e gordos gerânios, húmido, fresco, com sapos que se escondiam entre os vasos e lagartixas ao sol. O meu jardim era um pouco árabe e o seu único defeito consitia em encontrar-se tão longe das livrarias, festivais de cinema e teatro, enfim, da cultura. Por isso, acabou. No dia em que dei as roseiras, chorei, porque tinha a certeza que ninguém as cuidaria como eu. Nunca mais voltei a Alcácer por me ser insuportável encarar esta certeza.
A Isabel, minha colega, visitava-me, e demorava-se pelo jardim recolhendo tudo quanto era folha velha ou doente que eu não retirara por desleixo ou falta de tempo. Também arrancava dos vasos as ervas daninhas. Parecia-me mal aquela sua intromissão na limpeza do meu jardim e penso que só hoje compreendi.
A Isabel já morreu há uns anos, embora fosse da minha idade. Revejo na minha mente o seu sorriso, o seu rosto claro e sardento, a cor ligeiramente azul-acinzentada nos dias pós-quimioterapia, quando conseguia levantar-se e caminhar. Lutou cotra um cancro durante quase uma década. Tudo começou pelos gânglios e foi progredindo corpo fora, até tê-la tolhido por completo.


A Isabel tinha um filho muito jovem e reguila, e o que mais lhe doía era deixar a problemática criança, o que veio a acontecer. O cancro é uma doença que me lembra um dispositivo de autodestruição. A certa altura o dispositivo aciona-se sozinho e raramente é possível desarmá-lo, e nem sequer percebemos porque foi escolhida aquela pessoa e não outra qualquer. É uma roleta russa.
A Isabel limpava as ervas daminhas, as folhas velhas, as folhas secas ou doentes. Não suportava ver fora dela o que também a minava por dentro. E eu penso que só ontem pude compreendê-lo.

Mensagens populares