A minha aliança de casada

Foto: Isabela Figueiredo, agorinha mesmo






Casei há cerca de hora e meia.

Foi em casa da minha mãe, que me ofereceu uma peças vintage, entre as quais a aliança de casada da minha avó paterna, que por acaso expulsou o marido de casa por volta de 1924, porque não queria bêbados a viver debaixo do mesmo teto. Esta história é capaz de já ter muitos pontos acrescentados, mas foi assim que ma contaram. Nunca ouvi falar do meu avô paterno, não lhe conheço a profissão, apenas o nome, e consta que morreu nos anos 60. Nunca se verteu uma lágrima, em seu nome, à minha frente. Não sei onde foi enterrado. Todas as especulações são possíveis.

Já tenho a grossa aliança de casada, em ouro dos anos 20 do século passado, no meu anelar esquerdo, e não faço contas de a tirar, a não ser por motivos que o justifiquem profusamente, e agora não estou a ver nenhum. Nas lojas e instituições vou passar a ser muito melhor tratada, pode ser que o meu namorado aqui da rua, o do cãozinho, desista de me pedir em casamento, e tenho a certeza que o meu estatuto, de forma geral, vai melhorar, porque uma mulher casada, toda a gente sabe, não é refugo, um estafermo qualquer que ninguém escolheu.

Se viajar para países árabes ou mediterrânicos, a aliança protege-me. Os meus vizinhos vão pensar que sou apenas uma senhora cujo marido trabalha no estrangeiro e não a solteirona dos cães. Até eu, olhando para a mão esquerda, reconheço o solenidade do objeto no seu contexto, e não sinto que haja, no seu uso, uma mentira.

Não casei há hora e meia, mas há muitos anos, com o meu desgosto, a minha necessidade de viver, sorrir, continuar, apesar de ter perdido o que se pode perder, exceto o último reduto de lucidez, tendo essa ficado ligeiramente suspensa por uns tempos, a ver se voltava a colar, e colou. Casei com a minha carência de silêncio, alívio e morte. Com as escolhas que fiz, que me trouxeram ao quarto de solidão almofadada de onde não pretendo sair, porque não saberia viver noutro. Casei com a memória, o passado, o meu pai, os sonhos que todas as noites sonho com o meu pai - olá, querido! - as minhas cadelas, a minha mãe, os meus amigos, alunos, os grandes filhos-da-mãe. Casei, também, com a sorte de ser uma pessoa amada de forma muito simples, mas autêntica, sem nada mais, só isso. Esse amor alivia o meu desgosto e justifica sem apelo a minha nova aliança velha.

Mensagens populares