O amor é um fungo

Inês deixou de o amar numa tarde de Fevereiro, num repente, ao perceber que Marco lhe tinha zanga, que se masturbava imaginando as suas partes, apenas por ser o corpo mais à mão. Ele sentado na cadeira de rodas e ela mexendo-se por ali, rodeando-o a cada momento. Ele não podendo caminhar, vivendo mentalmente, e ela tratando da vida, trabalhando, agindo, bela, vivaz.

Mas nessa tarde de Fevereiro ele dissera-lhe "detesto-te", e acrescentou, "sorry". Inês não sabe se foi o detesto-te ou o sorry, pendendo para o segundo, mas nesse instante quebrou-se o amor, fez a malas e deixou-o atado à cadeira de rodas, às paranóias e à mamã, e foi procurar a sua vida, uma vida, uma flor ao sol, um chão acabado de regar.

Agora já não o ama, com uma certeza indesmentível. Di-lo a toda a gente, e a si própria, várias vezes por dia. O Marco e eu nada. Acabámos. Não o amo. Aliás, nunca o amei, foi uma ilusão, digamos, uma habituação. E vive. Veste-se, pinta-se, mira-se ao espelho, e imagina as palavras de Marco se pudesse vê-la como nos velhos tempos. Não as palavras, porque Marco nunca falou. Imagina os seus olhos seguindo-a. Não o ama, mas há uma raiz que fica lá no fundo, arrancado o arbusto do amor. Parece que veio tudo, mas restou um filamento muito subterrâneo, que não se sabe existir. Dali não sairá mais nada, com sorte apodrecerá, mas antes dessa morte é um desperdício que ocupa espaço; a terra sente-o como um espinho. Ou um fungo muito crónico. Como exterminar um fungo? Aplicamos pomada todos os dias e o fungo permanece sossegadinho, caladinho, ali, contemplando-nos inativo.

Inês deixou de o amar numa tarde de Fevereiro e esse empolgamento perdeu-se. Isso é certo. Não pensa nele, mas sabe que tem um fungo. Arranjou outros divertimentos masculinos, mas o fungo continua inextinguível. Já perguntou à médica de família se haveria uns comprimidos, mas que não, que o mais provável era levá-lo para a cova ou para o crematório, e aí, sim, curava-se. E a médica riu-se, como se também tivesse um fungo, como se soubesse.


Por isso, Inês continua pintando os lábios com vermelho-cereja, depois olha-se no espelho, sorri, vê que é bonita, que está tão bonita, e imagina, meu Deus, se ele pudesse ver-me agora.

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