Outra vez a morte

Quando o meu pai morreu foi um alívio. Será a centésima vez que inicio um parágrafo com esta frase. Quando o meu pai morreu, pensei, "finalmente". Não era possível continuar a vê-lo muito mais no estado em que se encontrava. Ele sofria, ele sabia algures que estava no fim, e para mim e a minha mãe era o calvário. A morte do meu pai foi uma dádiva para todos. Não só o seu sofrimento tinha terminado, como agora podíamos chorá-lo, fazer o luto e reiniciar a vida.

A sua morte marca um ponto de viragem na minha vida com uma importância semelhante à do 25 de Abril ou à do dia em que encontrei o Meu Amor. Digo sempre antes do 25 de Abril ou depois do Meu Amor. Digo sempre antes da morte do pai. Ou depois.

A morte de um Império, de um Amor, de uma vida, constitui um ponto de viragem. O que se segue não será igual ao que foi.

Não nos basta reconhecer teoricamente que tudo muda, que tudo nasce e morre. Que é essa a ordem do mundo, e está certa. É preciso compreender que o sentido da vida não é morrer, mas viver, e, contudo, aceitar que a morte é um fim bastante digno para um corpo que se usou até poder.

Não sei se quebrarei hoje, ou amanhã, a caneca verde-alface que se encontra junto ao meu pulso direito, ou se vou entorná-la sobre o teclado e destruí-lo. Não sei se vou ser alvo dos impulsos violentos de algum maluco no caminho até ao emprego. Não sei se herdei Alzeimer da minha avó, não sei se sofrerei de osteoporose, como a minha mãe. Aos 48 anos, o meu corpo ainda se defende, mas não sei que doenças se revelarão amanhã. Posso ter uma morte fulminante, com sorte, ou demorar um bocado, o pior, porque, chegada a hora, o que quero é morrer sem sofrimento nem atrasos. Não quero a minha vida prolongada artificialmente, não quero arrastar. Não sou esse tipo de pessoa, que vive no equívoco, que protela. Quero ser tão objetiva na morte como na vida.

Os amigos dizem-me demasiada fria relativamente ao tema. Talvez tenham razão. Sou como o vento de Janeiro no que toca aos finais. Se é para acabar, acabou, finish, passemos ao próximo. O que se gastou, está gasto. Mas, incomoda-me, também, a incapacidade revelada pela civilização ocidental para lidar com a única certeza que temos e podemos antecipar. A nossa morte virá dentro de dois, doze, trinta anos. Ou na semana que vem. Não interessa. Podemos tomar suplementos alimentares e usar cremes hidratantantes, o que faço muito, mas a morte, apesar de tudo, vem, instala-se, usa o que tem de usar, como tem de usar. Quem não conheceu na vida um joão que nos saudou, alegre, pelas dez, e às quinze estava ceifado?! Terá deixado a cama por fazer? A gaveta da cómoda aberta? A chávena do café, uma bolacha na mesa da cozinha?

Penso na morte todos os dias. Tenho tido bom treino. A minha mãe pode morrer a qualquer momento, e preparo-me para a notícia. O coração. Os pulmões. Se me telefonam tarde na noite atendo, pensando "foi agora". Penso igualmente na minha morte, sobretudo por questões afetivas, pelos que deixo: quem cuidará das minhas cadelas? Já levei alguém a jurar que cuidará delas na minha ausência. Cuidarás delas como se fosse eu? Sim, cuidarei.

Acredito que é importante, em alturas de ânimos exaltados pela morte, ou seja pelo que for, arrefecê-los, desemocionar, desproblematizar. A minha técnica continua a mesma, há muitos anos, e resume-se numa frase "Aconteceu. Vejamos o que fazer para resolver o problema e continuar a vida com a necessária calma".

Viver é uma experiência interessante com prazo de validade indiscernível. Enquanto não morremos, e os outros não morrem, convém vivermos e vivê-los. A roda roda outra vez, uma e outra vez. E por muito que se deseje, nada mais há a dizer.

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