Poderá a literatura portuguesa reabilitar a economia nacional?

Tinha nascido para grandes feitos, mas não o soube até conhecer Paulo.

Maria debatia-se com renitentes insónias desde a mais remota juventude, motivo por que sofria como ninguém para se levantar cedo para a escola, o trabalho, a vida em geral. Valia-lhe ser disciplinada. A dor, o cansaço, a tristeza, nada a detinha. Perseverava. Levantava-se da tumba para cumprir uma obrigação. Tinha sido educada à antiga e à católica, por uma família conservadora de direita: operários, mas limpinhos e passajados seguidores da ideologia salazarista.

O que quiseres, conseguirás, dependendo da tua diligência. Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje. Não cedas aos impulsos do prazer. Não podemos fazer apenas o que nos dá na gana. Cumpre e serás recompensada.

E Maria cumpriu à risca as instruções do senhor padre e da família: ofereceu a outra face, calou-se, levantou-se sem ter dormido, trabalhou sem ter descansado, e foram muitos anos nestas lides, lendo grandes obras pela noite fora: ingleses, russos, americanos, poesia e prosa. Mas a leitura não aplacava a sua ansiedade. Entretinha-a e alimentava-a.

Formou-se em Direito, e por via da sua boa vontade e da obra do Senhor, entrou na política. Admirava Paulo Maçaneta, da associação de estudantes, que, como ela, escondia atrás do sorriso, da energia artificial, um segredo de noites insones. Maçaneta teria como ela os seus momentos de derrota. Era muito possível que estes irmãos se sentassem à mesma hora no canapé do escritório, agarrando a cabeça entre as duas mãos, os cotovelos pousados nos joelhos, suplicando, Senhor, ajudai-me nesta hora de cansaço e trazei-me o alívio de que careço. Teriam os seus minutos de liberdade, de solidão apaziguadora.

Apaixonados pelas ideias, pela dignidade da nação, meteram-se ambos na política ao mais alto nível, sabendo manobrar influências e multidões para chegar aos mais relevantes cargos na estrutura partidária. Maria seguia Maçaneta para todo o lado, devotando-lhe uma dedicação ilimitada, uma paixão verdadeira, inocente, embora. Sobretudo desde que o mestre a tinha ensinado a dormir. Era fácil, afinal, explicara-lhe. Esquece o Xanax, Maria, esquece o exercício, os banhos quentes, a música zen. Faz o que te digo. E resultou.

Maria adormecia agora de luz acesa, com as mãos sobre o peito, e dormia noites inteiras até às sete, sem interrupção. Seguia agora o mestre com outra energia. Em campanha eleitoral mostrava-se sempre fresca, sempre a seu lado. Ele curara-a.

E Paulo Maçaneta não a esqueceu no momento em que, beneficiando de um golpe de sorte muito bem planeado, conseguiu um lugar no governo. Maria teria uma pasta, e não seria uma qualquer. Maria ascenderia a Ministra da Saúde. Sabia de Saúde? Quem é que não sabe fazer um xarope de cenoura, um chá de tília? Claro que sabia de saúde.

Maria, radiante, jurou cumprir com lealdade as suas funções e duas horas depois telefonava ao Secretário de Estado da Cultura e ao Ministro da Educação, propondo uma parceria que beneficiaria as três tutelas: poupava ela, ganhavam eles, e mudava-se o país. A proposta era muito simples, e tinha tudo a ver com medicamentos: os técnicos de saúde, nos centros e hospitais, deixariam de receitar ansiolíticos e soníferos. Em vez disso, literatura portuguesa.

Ah, senhora doutora, ando muito inquieto, não durmo.

Muito bem, vai aqui levar uma coleçãozinha do Alexandre Herculano e vai ver que resolve a questão num instante.

Oh, doutora, a ação, em Herculano, excita-me muito...

Bem, sendo assim, deixe-me cá ver os catálogos das editoras... Bragança, Abelaira, Oliveira, Saramago... olhe, um Lobo Antunes, que me diz?

Só se for destes últimos, doutora

Pois claro, destes últimos. Tem preferência por algum título.

Qualquer um, mas dois ou três.

Mas olhe que um basta-lhe para um mês ou mais.

Mesmo assim, doutora, para não andar sempre para aqui a caminhar, faça-me o favor e receite-me tudo o que publicou desde há 10 anos, exceto as crónicas em jornais, se faz favor.

O senhor é que sabe, mas não abuse, não abuse, olhe que isto vicia.

E só com Literatura Portuguesa, Maria diminuiu os custos na saúde, aumentou os índices de literacia, promovendo o sucesso escolar, e desenvolveu o setor editorial, diminuindo largamente o número de desempregados.

Maria e Maçaneta chegaram ambos à Presidência da República, um de cada vez. Nunca casaram: Maçaneta dedicava as noites à nação.

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