Uma guerra nossa




Sardinhávamos por Cacilhas e ela reparou na minha mão esquerda. Olha, trazes a aliança da tua avó! Pois, se a tens, por que não usá-la?!

E riu-se, satisfeita. Assim ninguém se mete contigo, andas pela rua sossegadinha. Fazes tu muito bem.

E continuou a pelar o peixinho dos santos, pejado de sal, com um sorriso estampado nos lábios tão similares aos meus. Finalmente, a filha sossegara, já não pensava em descendentes, em homens, e contentara-se em ser uma freirazinha de cabeça descoberta, consagrada à castidade, ao senhor, desistindo de se meter debaixo de uns e de outros, uma fonte de preocupações.

Tremi. A sirene da minha dignidade pessoal, do meu orgulho feminino, disparou. Caramba, tenho vaipes de derrota, mas não arrumei as botas, não arrumei mesmo nada as botas, esperem por mim, deixem-me só recuperar um bocadinho, que já levo de novo o meu cântaro à fonte.

Cheguei a casa e desencaixei do anelar esquerdo a linda aliança de ouro velho da minha avó, com a qual tinha sagrado o meu casamento com o mundo, a solidão, a arte... Queria exibi-la simbolicamente; aguentem a aliança da singularidade, interroguem-se, ponderem, questionem, então a mulher não era solteira?!

Mas tirei a aliança. O prazer no rosto da minha mãe era a sua vitória. Mostrava-me que me tornara no que desejou, e a ideia era-me insuportável. Não sei se isto configura um conflito de gerações tardio, mas sei que nunca quis ser o que sonhou para mim, portanto não vamos pôr-nos agora com modernices, alterando uma ordem que sempre resultou tão bem.

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