As cartas e as pétalas com purpurina

Para mim não foi em vão, mas o que tinha de ser.
Escrevia-lhe todas as semanas, por vezes a dobrar, para um endereço em Sines que me soava bastante social: rua L, Núcleo 351D. Seria a casa dos pais? Talvez fosse filho de pescadores. Nunca lhe perguntara nada de privado ao longo das nossas conversas. Contara-me da sua vida apenas o que veio a talho de foice. Fixei que tinha uma paixão no Cazaquistão, uma mulher muito meiga e bela, com lindos olhos castanhos, mas desvalorizei, porque o Cazaquistão, concretamente, onde é que ficava?, que mulher era essa, onde o esperava, mas, sobretudo, porque o Virgílio era homem e eu nunca acreditei neles, embora os procurasse.
O Virgílio partiu, a certa altura, para mais uma das suas explorações geológicas pela China e arredores, e não se saberia quando regressaria. Quando o projeto terminasse, ou o dinheiro. Embora escrevesse ótimos artigos científicos para o jornal, não era propriamente querido pelas mulheres da redação. Sempre vestido de preto, t-shirt, velhas calças de ganga, sapatos de corda, brinquinho na orelha; para as meninas do escritório havia ali mistério; não lhes parecia suficientemente lavado, o cabelo ligeiramente luzidio, sacola de pano, jamais um fatinho. Eu recebia-lhe os artigos, sorrindo; ele sorria. Falávamos sobre jornalismo e ciência. Era um homem discreto, que pretendia passar sem ser visto, ligeiramente feminino porque se libertara dos estereótipos que acorrentam os homens dos países mediterrânicos. Era só aquilo, e o que ele era, era tudo o que eu queria. Jovem, culto, atento, remediado, sem tiques, sem convencimentos. E deu-me para pensar que poderia ser feliz com ele.
Íamos almoçar a um sítio barato, perto da redação. Sempre que sabia que ele vinha, vestia-me o pior possível. Tirava os brilhos, as cores, as pinturas e acessórios. Ele devia de gostar de mulheres menos vaidosas, das que andam de ténis e se enchem de terra. E pelas horas do meio-dia, ele falava-me dos lugares por onde tinha passado, pretendia passar, projetos a curto e médio prazo, enquanto eu fingia ser apenas uma rapariga todo-o-terreno, ligeiramente punk, e ia escutando e tentando perceber como inserir-me naquele lato projeto de vida. Quereria largar tudo e andar atrás dele como assistente? Eventualmente. Não enjeitaria. Se ele gostasse de mim tudo poderia mudar. O Cazaquistão, por amor de Deus! Já para não falar da Geologia, com a quantidade de pedra que existe em Portugal. Tudo estava por decidir, eu tinha movido apenas a primeira peça do tabuleiro, mostrar-me disponível, cabia-lhe a ele a seguinte, que deslocaria quando lhe aprouvesse, sendo que eu não deixaria de auxiliar o destino como sempre fizera. Um empurrãozinho nunca se negava. Mas a partida para breve: a China. Era preciso enfrentá-la em espaço e tempo. Sim, o projeto era grandioso, a partida entusiasmava-o, naturalmente, e a mim cabia-me conseguir uma forma de não perder o contacto: escreve para aqui, respondeu-me, e manuscreveu o endereço de Sines num rabisco de toalha de papel do restaurante, com uma esferográfica preta, a maiúsculas mal desenhadas que me pareceram a mais bela das caligrafias. Estava ali um artista. Acrescentou, quando vier a Portugal, é aqui que paro, é o contacto mais seguro. Não sei quando voltarei, mas quando voltar.
Parecerá tudo isto demasiado incerto ao comum mortal. Para mim era uma incerteza certa. Ele voltaria. Não me interessava se demoraria seis meses ou seis anos. E quando voltasse, na rua L, Núcleo 351D encontraria tantas cartas quantas as semanas que estivera fora. Seria uma surpresa, uma revelação. Perceberia num ápice que ninguém toma a decisão de escrever semanalmente, sem esperança de saber quando e como será lida, sem que exista interesse pelo destinatário. Nesse instante, saberia tudo, e eu não teria precisado de pronunciar uma única palavra. Ela gosta de mim. Mesmo que não tivesse percebido antes, nesse momento incerto no tempo, que aconteceria, sem dúvida, porque um português retorna ao torrão natal muitas vezes, ele saberia. Convinha esperar. Eu faria o meu trabalho, o resto ficava nas mãos do destino. Não era impossível que ele se comovesse, que lhe viessem as lágrimas aos olhos, que pensasse, mas esta mulher gosta de mim e eu não reparei, e ela era doce, essa mulher. Eu acreditava que quem olhasse para mim podia perceber que eu era doce. E que essa doçura tão grande e tão transparente venceria o mundo. Quando confrontado com a minha alma, a verdadeira, que escondia porque a escondemos sempre, por vergonha de sermos demasiado bons, demasiado frágeis, a sua fascinar-se-ia.
O plano ficou delineado antes da sua partida para a China, e no próprio dia em que nos despedimos, no aeroporto, escrevi-lhe a primeira carta para a morada de Sines, o que realizei durante dois anos consecutivos. Muitas vezes eram só cartas, outras, pequenas encomendas com objetos que me pareciam belos e desejava oferecer-lhe: uma pedra, uma folha seca, um lápis, um livro, um recorte de jornal, uma foto, pétalas com purpurina, uma revista, por vezes objetos de arte postal, envelopes que eu construía e pintava ou nos quais fazia colagens, criações. Ocupava com ele uma parte do meu tempo livre e pensava, ele vai gostar, como reagirá quando abrir esta caixa? E uma parte de mim gozava com o amor que punha nessa correspondência cuidada, mas sem volta de correio. Imaginava que tudo parecesse estranho à família, a existir. Se telefonasse para casa dir-lhe-iam que tinha por lá dezenas de objectos postais provenientes do mesmo remetente? Rir-se-iam? E qual seria a sua reação? Telefonaria da China ou do Cazaquistão? E se fosse do Cazaquistão? Quanto tempo duraria a meiguice por aqueles lados? Quando chegaria a minha vez de poder abraçar a sua velha t-shirt negra e lavá-la com as minhas mãos, carinhosamente, como fazemos ao que pertence a quem amamos?
Nunca me passou pela cabeça que alguém ousasse abrir uma carta ou uma caixa. São ações cuja vileza escapa à minha cogitação. Mas que o fizessem?! Nada no meu discurso, nas minhas ofertas ultrapassava os limites do saudável bom gosto. Eram apenas cartas, relatos, coisas que queremos ofertar. Imaginei-o chegando a Sines, sentado sobre uma cama, num quarto humilde, rodeado pela minha correspondência, lendo-a. Não pus a hipótese de que nunca lhe tocasse, por não lhe ser entregue ou por não estar para perder tempo com alguém cuja loucura motivasse a escrita de para lá de um cento de objectos postais em 24 meses. Não me ocorreu que um ser humano não soubesse o que fazer a tanto discurso, que pudesse mesmo optar por não o ler, por metê-lo num saco velho e atirá-lo ao lixo, pensando, ele há cada uma, ou apenas, até leria, mas não tenho tempo. Eu teria sempre interesse e curiosidade por palavras, mas eu... É evidente que não antecipei que recusaria ler-me; escrever era a minha profissão, e ele sabia-o, mas, muito melhor do que isso, escrever era o que fizera desde que aprendera a juntar sílabas, muito antes de se ter transformado numa profissão. Não havia coisa que eu não soubesse descrever ou comunicar através de uma frase, de um parágrafo. Eu tinha vivido de cartas, para as cartas, e sabia dizer o que fosse necessário mesmo sem escrever as palavras que o designavam, portanto seria tudo uma questão de tempo, e eu tinha-o. O tempo tudo resolve. A estratégia era simples; escrita e paciência.
E o tempo passou, passou, até surgir na minha vida um outro rapaz, meu vizinho, que me via sozinha no café a ler, dizia gostar de livros e queria discuti-los comigo. É novo, atirava-me aos olhos a consciência. Pois é, Nossa Senhora, é um miúdo, o que é que eu faço a isto, com certeza passa-lhe, respondi, supus, mas sendo novo não lhe passou. Lia, de facto. Via filmes na televisão. Falava sobre eles com paixão, inteligência e ousadia. Não era ninguém na vida, e eu não sabia o que fazer-lhe, por isso apaixonei-me por ele e deixei de ter tempo para escrever cartas ao Virgílio. Gostava de saber se algum dia voltou a Portugal, se leu todas as folhas que lhe manuscrevi com letra miúda e perfeita, no melhor papel, com a caneta mais fina, se chegou a ter nas mãos as pétalas sobre as quais polvilhei purpurina, se as guardou ou atirou ao lixo, se alguma vez se voltou a lembrar que eu existia, aquela gordinha que escrevia e não era feia, mas por acaso não lhe dizia mais nada.

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