Os remediados

Quando era menina e via os negrinhos rotos rondando a porta, rondando os restaurantes nos quais comíamos camarão grelhado com limão e piri-piri, eu pensava que era rica como os ricos das histórias de Dickens. Eu tinha tudo, eles, nada. O meu pai explicava-me que não, não era verdade, nós não éramos ricos, mas remediados, e eu olhava para os armários cheios de comida, lá em casa, e pensava que aquilo estava acima do remediado. Mas hoje penso que o que houve sempre em abundância foi comida, o que ilumina em mim o que terá sido o passado do meu pai, esse homem que pouco falava do passado, sempre cheio de fome, a mesma que o matou.
Herdei dele essa fome que não pode saciar-se.
A minha casa em Lourenço Marques era humilde, embora grande. Espaçosa, contendo apenas o essencial. A minha mãe trabalhava muito no quintal, plantando legumes, tratando dos coelhos e das galinhas, limpava, limpava, batia-me porque eu não fazia nada, só queria ler e imaginar brincadeiras que acabavam em trabalhos que ela haveria de limpar, e o meu pai passava o dia, de manhã à noite, a dar porrada nos pretos, e de vez em quando confraternizando com eles, tudo com a mesma naturalidade, bebendo vinho da metrópole e comendo carne, e nesse momento eram iguais, só quando o trabalho saía bom. E a nossa vida de remediados, que eu julgava de ricos, deslizava.
Só muitos anos depois, hoje, tendo desconstruído mil vezes a figura do meu pai, para a compreender, vejo que tinha razão. Vivíamos do trabalho dos meus pais, e quando após o 25 de Abril veio o Período Sem Lei, e sem trabalho, as economias duraram um ano, o tempo suficiente para me comprarem um bilhete para Portugal, tentar arranjar a carrinha (entretanto deixara de haver peças) e subir até ao Songo para arranjar emprego em Cahora Bassa. Nós sempre fomos apenas remediados.
E eu sou o meu pai. O que resta dele. A única marca que deixou sobre a terra.

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