Um animal de alto risco


Costumo receber emails de diferentes projetos na área da psicologia.

As pessoas preocupam-se comigo, nota-se.

Costumo lê-los sempre com atenção, fazendo os testes para tentar descobrir onde me encaixo, mas como seria de esperar não encaixo totalmente em coisa alguma, a não ser nos índices de stress/ansiedade, a cem por cento.

Tendo ligeiramente para a depressão seguida de euforia, com pinceladas de bipolaridade, mas são apenas estados de espírito sem grandes consequências, perfeitamente aceitáveis para o comum mortal. Há traços de personalidade-limite (que em português se costuma designar por borderline), mas as manifestações são diferentes do usual. Embora apresente sintomas de comportamento associado ao stress pós-traumático não consigo reportar um único acontecimento, apenas um conjunto alargado de vivências de extrema ansiedade, e realmente não acordo a ouvir tiros nem a tentar safar-me a uma explosão. Não apresento qualquer traço de esquizofrenia, pelo que sei sempre muito bem quem sou, mas persiste uma moderada perturbação obsessiva-compulsiva, consciente, controlada e fora do padrão tradicional: não tem a ver com ordem, limpeza, etc., mas com repetição de outros padrões comportamentais.

Resumindo, sendo um veículo todo amolgado, nada me impede de circular. Não sou um perigo para o trânsito, embora já tenha comprometido as minhas engrenagens, episodicamente, e em potencial me mantenha um animal de alto risco, vigiado e controlado pela própria consciência.
Os sites de psicologia são interessantes, mas não me fascinam. Não há ali nada que não possa compreender e é aí que pretendo chegar: ao que ainda não compreendi.

Para isso preciso da minha psicanalista, que abandonei. Lembro-me dela frequentemente. Tinha um ar doce e sofrido, e foi o que me manteve consigo tanto tempo, porque não alimento relacionamentos de quase cinco anos com alguém que nada mais tem para me dar para além do nome e da profissão. Tirei uma nota tão boa no curso "como mandar o outro dar umas voltas ao bilhar grande" que ainda guardo a medalha de louvor, pendurada no roupeiro, misturada com as saias e as calças de quando era gorda a sério, gorda mesmo gorda, nojenta de banha e asco. Uma visão insuportável para o mundo e para si própria.

Mas ela era doce. Abria a porta com um sorriso. Normalmente eu estava já à espera. Não nos dizíamos nada de especial. Ela sentava-se no sofá reclinável. Tapava os joelhos com uma mantinha - penso - talvez seja impressão, não tenho a certeza. Eu nunca me tapei com nada. Era um divã de pele negra. Ou talvez não. Isso agora não interessa. Mas como é que não me lembro da cor e do material do divã? O teto, sim, era branco, tinha textura. Uns quadrados. Se fosse ao fim da tarde havia pouca luz, e eu gostava mais nesse momento do dia, porque eu tombava na hora mágica em que tudo pode dizer-se sem medo, pudor, sujidade e gente. De manhã, pouco. A luz da manhã, mesmo coada, esgueira-se tão fina e intensa que fere. Por isso odiava as manhãs nas quais ela me queria encaixar. Ela queria encaixar-me, como se não soubesse que eu não sou encaixável, que não pode fazê-lo comigo. Não podia. E ainda não. Porque a nossa relação não terminou. Suspendeu-se.

Lamento que a última palavra tenha de ser minha. Que realmente seja eu quem deve decidir como e quando acaba - e saiba quando chegou esse minuto de rejeição, tão frio. Lamento que seja assim. porque não foi uma escolha minha.

Poderia ser tudo diferente, mas por enquanto ainda sou eu quem dá a porrada necessária aos pretos, o tempo que for preciso, com a violência que a Ordem manda, porque sou eu quem decide. Parece claro, simples, mas não quer dizer que compreenda.

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