Um corpo rombo

Tem medo de morrer. Treme-lhe o coração, bate com força, pum-pum-pum, os rins funcionam demais ou de menos, a coluna vertebral colapsou, respira mal, tem dores quotidianas em locais diferentes, por vezes em todos ao mesmo tempo, mas analgésicos não, nem penses, porque o coração está fraco, e tem medo de morrer. Poderia morrer, talvez fosse um descanso, mas só se se entregasse, se aceitasse que viveu - contudo existe a terra cheia de sol, e a filha leva-a a passear de carro ao domingo, apanha no ar o cheirinho dos pinheiros, do mar, pergunta, então já tens tomates na varanda? Olha que o tomate quer muito sol e água. Ao teu avô nasciam-lhe tomateiros por todo o lado, na quinta, e nós apanhávamo-los e comíamo-los como se fossem fruta. Havia uma qualidade deles pequeninos, meio selvagens...

Já é muito velha, e o corpo rombo vai cedendo, mas tem medo de morrer. Pensa nisso, mas não quer pensar, fica em pânico. Reza muito para que Nossa Senhora lhe conceda longo tempo acrescentado, e ignora as dores, ignora, ignora, e vamos. Tem medo de morrer porque a filha ficaria sozinha. É a única que teve. Não lhe deu irmãos nem sobrinhos e a filha não teve homem nem filhos. Não se arrumou, como as outras, portanto não se atreve a deixar a filha nessa solidão. Era o destino, diz-lhe. Tu tinhas o teu destino. Nunca nos deste desgostos, diz-lhe. E a filha sorri. Nunca deu, é verdade. Nunca abriu a boca para exprimir um sentimento pessoal, porque nas famílias não existem sentimentos pessoais, sempre indesejados, mal vindos, reflexos de um esforço educativo falhado. Uma pessoa bem educada não tem desejos, ansiedades, contradições, angústias. Não se interroga, não se debate. Uma pessoa bem educada controla-se e aceita. A filha sempre se controlou e nunca lhe deu desgostos. É bem verdade. Por isso ela não morre. Porque a filha não merece ficar só. Não pode. Não seria justo. É a sua única filha, a sua responsabilidade até ao fim, portanto, desculpem, embora o corpo lho peça, não morre.

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